26/04/2011

Nada nunca é claro o suficiente e tudo sempre será mudado


The Architect’s Brother
Robert and Shana ParkeHarrison,

Procurando uns certificados antigos no fundo da gaveta, encontrei uma foto, entulhada numa confusão de papéis.

É de um acampamento, algo por volta de 2001 ou 2002, acho. A foto é do retorno. Estamos de frente da minha casa no meio de bolsas, colchonetes surrados enrolados feitos charutos, violão Giannini. Meu cachorro, Dieke, naquela época, ainda atravessava a grade da varanda e vinha correndo na minha direção quando eu dobrava à esquina de casa. Marcava minhas calças com as unhas sujas de barro, cravava os dentes na barra da calça e puxava o mais forte que podia. Afeto de bicho é assim. Embora o olhar seja cativante, só se realiza no tato.

Essa casa à esquerda não existia, essa casa à frente não tinha portão. O cachorro está na foto, de pé, meio de costas e de lado, olhando na mesma direção de quem bateu a foto. Olho a foto e lembro que o Dieke sobreviveu a incontáveis atropelamentos e surras de cachorros maiores. Por pior que fossem os ferimentos, sempre se recuperava. Daí deve ter vindo a sensação de que ele não ia morrer nunca, ou, pelo menos, morrer junto com a gente, viver no mesmo tempo. Às vezes me esqueço que a vida dos cachorros é mais apressada que a minha, mais curta, e deve ser por essa assimetria no tempo que o Dieke esticava a barriga na sombra e dormia o mais justo dos sonos, como se dissesse: falta pouco.

Deve ser por isso que insistia naquela vassalagem a troco de parcos restos de comida, fubá com água, um osso de frango; insistia na servidão como se tivesse piedade da gente, que precisa viver muito mais que ele. Nada mais valoroso que um instante, se a vida fosse um sopro só, e logo desaparece completamente, ia ser a coisa mais valorosa jamais inventada. O valor das coisas vêm da raridade. Se tudo é especial, nada é especial. Mas, nem tudo que é breve é intenso, nem tudo que dura é entediante. Essa falácia de uma ligação essencial do breve como sinônimo de intenso, deve ser culpa do orgasmo. Mas nem um milhão dos melhores orgasmos têm substância suficiente pra sustentar uma relação. O orgasmo é um pequeno osso que a vida nos joga, e quando a gente morde, evapora entre os dentes. Leveza em excesso é só vazio. Viver em função do momento é como abraçar a neblina. E a memória de um orgasmo, tão afastada da sensação em si, tende a não-existência. No fim, só nada, igual a invenção da vida pregressa como realidade estática, experiência vivida e cristalizada, nostalgia, mesmo da dor e da culpa de outrora, esse fiapo de vida que a gente arrasta feito um rabo, e ainda teima em acreditar que existiu de tal jeito, do modo que melhor nos convém; pra não enlouquecer, é claro. 

O que está feito está feito, pronto e acabou; mas, por outro lado, nada é mais maleável que o passado enquanto memória. Porque, diante da memória, nada nunca é claro o suficiente e tudo sempre será mudado. Feito uma montanha às suas costas, que vai revelando novos ângulos conforme você vai se afastando, conforme o traçado da estrada te leva para esquerda ou para direita; conforme o terreno mergulhe numa depressão ou se eleve na escalada de uma colina; e pode acontecer daquela montanha às suas costas,  imensa quando próxima, diminuir de súbito, ser encoberta por outra montanha, ficar feia e sem graça, perder o vigor, ou simplesmente ser apagada do campo de visão conforme a caminhada avance. Daí, a gente esquece.

Nessa foto do acampamento tem três defuntos. Um amigo, que morreu de acidente de carro. O Dieke, que morreu de velhice, banguela, aleijado e terminou num saco, no fundo do rio. E um amor, que morreu sem motivo, como morrem todas as coisas, a despeito do reconhecimento das causas.

Dieke
*******

2 comentários:

  1. Gostei do Blog, seguirei.
    Da uma olhada no meu:
    http://mensagensquenaomandei.blogspot.com/

    ResponderExcluir
  2. Rapaz quase que choro no final, sério mesmo me emocionei... eu fico às vezes, a pensar num momento desses que virá um dia para minha companheira Nina... =/

    Linda descrição, também acredito que isto valha para nós(homens): "Afeto de bicho é assim. Embora o olhar seja cativante, só se realiza no tato."

    Abraço! XD

    ResponderExcluir

oi.