10/06/2011

minha primeira namorada

By Troche


Minha primeira namorada era três anos mais velha do que eu, e já sabia ler, enquanto eu ainda riscava, com letra tremida, meu nome, o nome da professora, da diretora, numa folha chaméx com pontilhados roxos, cheirando à álcool. 

Minha primeira namorada era da turma dos grandes. Os grandes tinham um recreio barulhento e cinco minutos mais curto que o nosso, e eu não entendia porque o recreio deles era mais curto, se eles eram os grandes. Porque os grandes, na minha cabeça, precisavam ter um recreio mais demorado, mais longo, e os pequenos, claro, mais curto. Mas minha lógica primária, desde sempre, nunca teve nada a ver com a lógica da escola. E além de tudo, os grandes eram cheios de privilégios, podiam andar de bicicleta do outro lado da cidade, alcançar prateleiras, rir de umas piadas esquisitas, chutar bola no campinho ao pé da serra até quase escurecer. Não fazia sentido essa restrição, mas eu não falava dessas coisas, guardava para mim. 

Também não falava para a minha primeira namorada que ela era minha primeira namorada. Porque, afinal, ela era da turma dos grandes, e eu era da turma dos pequenos. E quem era da turma dos grandes andava com a turma dos grandes, quem era da turma dos pequenos andava com a turma dos pequenos. Se a professora pegasse a gente brincando com a turma dos grandes, era castigo na certa. E mesmo fora da escola, no futebol, por exemplo, a gente não podia jogar com a turma dos grandes, senão, talvez, encarnando a entidade metafísica e fantasmagórica do café-com-leite, cujos gols não valiam. E não há nada mais metafísico e fantasmagórico do que gols que não valem. É como estar em um absoluto estado de impedimento. Com a bandeirinha carimbada na testa. 

Eu me sentia desse jeito com a minha primeira namorada. Eu a namorava, mas eu era um namorado café-com-leite. Não podia brincar com ela, não podia levá-la na minha casa para assistir Pica-pau comigo, para escalar as grades da Igreja Velha, para fazer bolinha de papel e saliva e jogar no teto. Não podia fazer nada, apenas guardar o segredo e prosseguir namorando. 

Mas eu tinha um amigo na turma dos grandes, o Bareta, meu vizinho da esquina, que além de me ensinar uns golpes mortais da faixa amarela de Kung-fú, e me dar um poster do Bruce Lee, era meu conselheiro para assuntos aleatórios. E já com aquela crise no relacionamento me dando nos nervos, eu resolvi desabafar com o Bareta, enquanto a gente enchia a cara de mexerica lá na casa dele. 

O Bareta me ouviu com atenção enquanto eu contei como essa coisa de grandes e pequenos não fazia sentido, e como para mim era complicado ficar vendo a minha namorada, a Marcelinha, só de longe. Que se o relacionamento não avançasse para um nível de maior intimidade e comprometimento dos dois, a coisa ia ruir. O Bareta cuspiu umas sementes e disse que eu tinha razão, mas que a coisa era assim mesmo. Que essa geração de mulheres havia conquistado a autonomia e independência, e que a derrocada de uma sociedade  patriarcal não caminhava para o equilíbrio, ao invés disso, estávamos apenas invertendo os lados, caminhando para uma sociedade matriarcal, com as mulheres dirigindo países e multinacionais e os homens pilotando aspiradores de pó e cuidando da casa, sem contar os relacionamentos moderninhos regidos por elas, coisa que começou com isso de viver em casas separadas, relacionamento aberto, paralelos, essas coisas. Eu sentia arrepios só de pensar. Não estava preparado para tanto modernismo. O Bareta enfiava outro gomo na boca e achava tudo natural, chamava isso de dialética. 

Mas o Bareta disse que eu tinha que colocá-la contra a parede, tomar uma atitude drástica, que não tinha meio termo: tinha que contar para ela que ela era minha namorada. 

*** 

A nossa turma, os pequenos, enfiada numas roupinhas vermelhas, só encontrava com a turma dos grandes, enfiados no uniforme azul-marinho e branco, em duas ocasiões: antes da aula ou nas horas cívicas, que aconteciam toda sexta-feira e estavam sempre ligadas a alguma data comemorativa. Eu namorava a Marcelinha nessas horas. Ela apontava com umas coisas coloridas grudadas no cabelo preso, e os olhos bem pretinhos arregalados e arrastando umas sandálias de plástico verde limão. Ela chegava no portão, e eu ficava meio zonzo, como se o chão escorresse sob meus pés. Eu ficava encostado perto da diretoria, encolhido com a minha merendeira do Fofão entre as pernas. Ela sorria e balançava a mão bem depressa e eu avermelhava o rosto na mesma hora. 

Nesse dia que resolvi falar com ela fiquei ainda mais zonzo, e foi complicado me levantar dali e cercá-la. Minhas pernas fincaram no chão, a coluna endureceu, o queixo desceu no peito. Levantei me arrastando, meio coxo, num trote duro. Parei na frente dela mas a voz não saía. Ela ficou me olhando com aqueles olhos arregalados, que engoliam a parca coragem que me restava e conduzia minha voz ao exílio completo, nalguma região desconhecida do interior do estômago, queimando de frio.

“O que foi?”, ela disse. 

E depois disso, só lembro dela já longe. Como uma queda de energia que apaga a televisão na melhor parte do filme. Não sei o que falei, e nem como falei, se fui claro o suficiente, se ela entendeu. Algum instinto defensor de corações partidos deve ter soterrado essa memória na última gaveta do inconsciente. E talvez seja melhor que fique por lá, empilhada junto com a lembrança do gol contra no meu primeiro jogo de futebol, e da vez que deixei o pote de mel cair no meio rua, e da vez que fui comprar pão com uma fantasia do He-Man caseira, feita com restos de calça jeans, e todo mundo riu de mim. E claro, junto das diversas vezes que redescobri a verdade universal da vida: as pessoas que a gente mais gosta são as que mais nos machucam, e vice-e-versa. 

Quando relatei o ocorrido para o Bareta, a gente enchendo a cara de mexerica na casa dele, o Bareta cuspiu umas sementes e disse que era a assimetria natural da existência, além dessa minha inclinação astrológica viciosa, Leão com ascendente em Sagitário, e que eu devia passar a aceitar as coisas como elas são. Enfiei um gomo na boca e disse que ia tentar. E continuo tentando até hoje.


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10 comentários:

  1. Gostei muito do texto, compartilhei no face, ok?
    abracos...

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  2. Carol: grato pela leitura e por compartilhar.

    Troche: Gracias por el cumplido, su trabajo es inspiración. un abrazo

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  3. ah, marquinho, que graça.
    e eu lembrei da vez que fui sozinha buscar o leite na casa da mulher que trazia do sítio. derrubei na rua a garrafa pet cheia de leite e ela estourou, vazou tudo. eu na rua, sozinha. deve ser a msm cara de quem derruba o pote de mel.

    vc me inspirou. passa depois no meu blog.

    bjo

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  4. Carol,

    Um dia eu conto a história do pote de mel.

    bjo

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  5. conta, dai eu conto a história do leite. (:

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  6. hehe como nao tive um amigo q nem o seu e nao gosto de deixatr as coisas como sao(minha psic,me chama de Turrao)eu desisti de tentar a muito tempo, acho q posso me chamar de um maldito celibatario que espera a sua pricesa cair ddo ceu...hehe XD =/

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  7. Wagner, minha irmã me chama de turrão.

    Um abraço.

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  8. Marcos, fico aliviado em saber não sou um turrão solitário...hehehe


    Abraço! XD

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oi.