20/11/2010

68 contos de Raymond Carver: um elogio à Carver




A leitura de 68 contos de Raymond Carver, tradução de Rubens Figueiro (Cia das Letras, 2010) tem sido das mais prazerosas. A introdução de Rodrigo Lacerda, que levanta a trajetória de Carver, desde as publicações em revistas literárias independentes, dificuldades para concluir sua formação, até a consagração, a relação com os editores, os cortes excessivos no texto, o estigma de minimalista, é sensacional. Principalmente para um caipira como eu, que chega tarde à obra e ao vasto universo de produção de um dos maiores contistas modernos.

Duas coisas me levaram até Carver. A epígrafe de Deixe o quarto como está (Cia das Letras, 2002) excelente livro do Amilcar Bettega, e a leitura de contos esporádicos, alguns na internet, outros da mão de amigos, em rápidas ocasiões. Nem por isso deixaram de me impressionar.

Chego a levantar a tese que, num único texto, podemos encontrar o eidos da verve literária de cada escritor, o tal do estilo. Como algo que perpassa toda a obra do autor e que por isso mesmo assume a nomenclatura de obra, como edifício, ou pirâmide, como diria Guimarães Rosa. Chego a levantar a hipótese de que em alguns casos, essa obra pode ser decomposta, pode ser decomposta como uma espécie de fractal. Sou levado apressadamente a pensar assim sobre a produção de Carver. Porque Visor me impressionou muito, e a cada conto que leio desses 68 contos, "Eu conseguia enxergar as menores coisas", "Por que não dançam?", "Você é médico?", "Penas", "Mecânica popular" só pra citar alguns, (ainda não li todos) sinto a mesma força narrativa daquela que senti ao ler Visor. Claro, um autor acaba se refazendo à medida que produz, cada vez que enfrenta um novo texto, não apenas o texto é outro, mas esse autor já é outro. Os desafios impostos a si mesmo são outros, a necessidade e  os problemas daquela criação em particular são outros. Isso termina refletido no texto e, de certa forma, é essa intenção/resultado movediço que provoca a habitual divisão da obra de muitos escritores, esse é o caso de Carver, naquele dualismo costumeiro das duas fases. Geralmente uma fase de preparação, onde a prosa é incompleta; e uma fase de composição mais madura, apurada, supostamente impecável. Como se, de um dado momento em diante, o escritor atingisse o cume de sua formação, encontrasse uma espécie de graça ou truque infalível.

Não sei.

Carver me parece Carver em todos os contos que li até agora. Carver me parece Carver desde “Estações tempestuosas”, com longas descrições de ambientes, carregado de detalhes e ações, profundamente sensorial, cromático e sonoro; como se Carver desejasse “realmente” criar um ambiente, preencher todas as lacunas desse espaço, dar a justa medida de cada coisa; como se (aqui tenho que admitir a hipótese do escritor partido ao meio) o primeiro impulso do escritor criativo (diferente do escritor de impulso imitador ou impulso expressivo)*, fosse dar força objetiva à criação a partir desse realismo. Criar “realmente” um espaço de ficção. Cavar seus fundamentos, estruturas, compor cada detalhe. Claro, é algo impossível. Nenhum texto literário é capaz de emular a realidade em sua totalidade. Parafraseando um parco chavão/slogan de Sartre, todo escritor tenta ser uma espécie de Deus, criar um mundo capaz de prescindir desse mundo real; portanto, fracassa. Penso em Sartre equivocado; apesar desse aforismo soar bonito. Nem toda literatura parte dessa pretensão horrorosa. E muito menos nega in absoluto essa pretensão (o que dá no mesmo, já que o oposto, nada mais é, que outro lado da moeda daquilo que é negado). Afinal, uma negação ab aeterno do realismo, termina por ser uma fantasia real: o que é, necessariamente, o mais bizarro dos realismos.

Penso na obra de Carver composta a partir da estrutura dos fractais. Suponho um suposto Carver no ápice de sua criação, o Carver supostamente maduro, da segunda fase, assimilando essa estrutural fractal e compondo a partir dela. Suponho Carver numa epifania diante da realidade, compreendendo a realidade a partir da geometria fractal, suponho Carver efetuando recortes, arrancando lascas do real, gomos, criando a partir dessas lascas; ciente de que cada lasca comporta toda estrutura.


Não imagino Carver como mais um escritor partido ao meio. Vejo a mesma fissura, vejo essa ligação. Mas não suponho Carver como um monólito imóvel e imutável. Cada Carver é um Carver e no meu elogio à Carver, imagino o próprio Carver como um fractal.

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Escritor de impulso imitador: aquele que começa a escrever por imitação, geralmente de um autor ou gênero em particular.

Escritor de impulso expressivo: aquele que começa a escrever por certa necessidade de expressar-se, colocar pra fora, desabafar.

Escritor de impulso criativo: aquele que começa a escrever por necessidade da criação por si mesma, por fruição da criação.

Um comentário:

  1. Carver é demais!!!! Adoro aquele conto do pavão e do bebezinho feio.

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oi.