11/02/2011

Mão

fonte: Arquivo Público Mineiro

“Não se lavava, não se vestia, e às vezes nem mesmo saía da cama, e aos poucos foi tomado por uma espécie de indiferença; apesar de suas esquisitices, quando criança era muito afetuoso, não apenas com os membros da família, mas também com os vizinhos, os escravos e até com os desconhecidos, e a tal ponto que às vezes suas demonstrações eram exageradas e inclusive desagradáveis para certas pessoas que estavam apenas de passagem na casa, mas essa afetividade fora desaparecendo, como se o mundo real em que vivera até aquele momento tivesse sido substituído por outro em que tudo lhe parecia externo e cinzento. Os problemas, as doenças e inclusive a morte de pessoas que antes lhe haviam sido muito queridas não despertavam nele nenhum sentimento ou emoção, e se de vez em quando em seus suspiros, por vezes seus gemidos desvendavam nele nenhum sofrimento inequívoco, era impossível saber o que causava, embora se adivinhasse que os motivos não estavam em nenhum acontecimento exterior, mas antes nuns poucos sentimentos dolorosos que pareciam ser sempre os mesmos, e que ele ruminava incessantemente. Foi preciso começar a obrigá-lo a se levantar da cama, a vestir-se, a comer, a dar uma caminhada ou pelo menos sair pelo corredor externo ou para o pátio, principalmente quando o tempo estava bonito, e se no início ele protestava, no fim, dócil, deixava-se levar. Sua eloqüência, que em períodos de excitação utilizava para tentar convencer seus semelhantes de que uma catástrofe confusa mas iminente os ameaçava, começou a perder força, e seus discursos veementes foram se tornando cada vez mais descabelados e providos de convicção, e se no início eles eram acompanhados por atitudes e gestos que os sublinhavam, principalmente, davam por subentendido o segredo que sua veemência pretendia transmitir a seus semelhantes sem revelá-lo por completo, pouco a pouco, ao desmantelamento de suas perorações, nas quais as exclamações haviam sido substituídas por frases incompletas e vacilantes, vinham somar-se a rigidez de suas expressões e a imobilidade passiva de seus membros. No fim ele só abria a boca para responder, sempre com monossílabos, a alguma pergunta que lhe fizessem.(...) E nos últimos meses sua prostração fora total; contudo um detalhe curioso viera somar-se à sua conduta já tão estranha: fechara a mão esquerda, e desde então permanecia com o punho fortemente apertado. Quando lhe perguntavam a razão desse gesto virava a cabeça e apertava também os lábios, dando a entender que não estava disposto a responder, e nas duas ou três vezes que, para ver o que acontecia, e inclusive em certas ocasiões só de brincadeira, alguns dos membros da família haviam tentado obrigá-lo a abrir a mão, ele resistira com tanto desespero que, penalizados, seus familiares haviam por deixá-lo em paz. Um dia alguém notou que a mão sangrava, dando-se conta de que todo aquele tempo as unhas haviam continuado a crescer, cravando-se na carne macia da palma da mão, de modo que foi preciso obrigá-lo de verdade a abrir a mão para cortar-lhe as unhas e fazer um curativo nas feridas. Segundo o senhor Parra, o jovem Prudencio começara a uivar e se jogara no chão contorcendo-se para tentar impedir que lhe abrissem o punho, e fazendo tamanho escândalo que os vizinhos chegaram correndo, pensando que algum crime fora cometido naquela casa, e apesar do estado de extrema debilidade em que, devido a sua prostração e sua inapetência, encontrava-se o jovem Prudencio, sua resistência era tanta que foi necessário três ou quatro homens vigorosos o imobilizassem, abrissem seu punho e mantivessem sua mão aberta enquanto lhe cortavam as unhas e lhe pensavam as feridas já infeccionadas. Durante todo tempo que levou essa operação, Prudencio uivava ou gemia com tal expressão de terror que as pessoas ficavam com pena dele, mas vários presentes observaram que Prudencio olhava para o teto e as paredes do aposento com apreensão, como se temesse que fossem cair em cima dele.”



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