04/02/2011

Pequena epifania do boteco copo sujo

Eu não tinha nenhum motivo pra sair da cama, nem um relógio programado e ficava quieto ouvindo por um longo tempo o barulho de passos nos cômodos da casa, portas batendo e a descarga no andar de cima, portas batendo e sapatos descendo escadas e o barulho de pulseiras nos braços de quem descia as escadas, o barulho de carros descendo a rua, dois sujeitos conversando sobre uma tal de Mariana, descendo a rua até se afastarem e o diálogo submergir no silêncio anterior, até outros carros aparecerem, cada vez mais carros e mais sujeitos descendo a rua (ou será que subiam?), sons que subiam até à janela, mesmo fechada, três andares acima, me forçando a participar da conversa sobre Mariana, ou Antônia, Rafaela, Juliana, aula de Matemática( ou Geografia?), imaginar uma queima de estoque no próximo sábado (ou seria segunda?), descendo a rua (ou será que subiam?), pessoas, motivos enfiados em casacos, mãos nos bolsos sob guarda-chuvas e os carros acelerando por um motivo, descendo a rua e deixando seus barulhos pra trás, pra cima, debaixo da minha janela por um motivo, enquanto eu queimava os giros do relógio deitado, sem nenhum motivo pra sair da cama, mas vinha a vontade de fumar e eu levantava, sem nenhum motivo além dessa necessidade impingida artificialmente, mas levantava, levantava pensado que aquilo que me matava aos poucos, tragos que desciam o esôfago para apodrecer alvéolos e sujar meu sangue e amarelar os dentes na volta, era a coisa mais relevante naqueles dias, mas levantava, não era um motivo igual aos motivos dos carros descendo a rua (ou será que subiam?), era um incômodo, um incômodo que me obrigava descer até a rua com os bolsos estufados de moedas, fazendo barulho enquanto descia as escadas do prédio, barulhos ao caminhar com as mãos nos bolsos, barulhos na palma da minha mão enquanto conferia o valor e tocava a textura fria das moeda e escolhia um cigarro desses mais baratos, mesmo desejando outro, e inferindo que não importava, bastava me livrar do incômodo, e perguntar se a mulher com as raízes do cabelo escuras tinha fogo, e tragando a fumaça do fósforo junto da fumaça do cigarro e o leve enjôo no estômago vazio (outro incômodo), e a fome que surgia de repente, a soma de vazios acumulados durante toda noite em silêncio, porque nem música eu suportava, e assim que terminasse esse cigarro, já na porta do prédio, a fome seria o incômodo maior, e voltar para a cama seria impossível diante da fome, que ali, subindo as escadas teria que planejar alguma coisa pra comer (outro incômodo), e assim foi feito, e no meio da refeição, mascando pedaços suculentos de carne de porco descongelada as pressas, lembraria da conta de luz (outro incômodo) e que me faltava dinheiro (talvez o maior dos incômodos) e que certamente cortariam a luz na próxima semana se eu não fosse até lá choramingar como um cão (o teatro não seria um incômodo), choramingar como um inválido sem muletas, bem equilibrado e com os joelhos em perfeito estado, juntas no lugar, gaguejando e soltando atos falhos um atrás do outro; ir lá pedir dinheiro pra continuar aqui, às vezes deitado, às vezes sentado, e quase sempre num boteco copo sujo, deduzindo que a vida se move por incômodos e não por projetos, sem incômodo ninguém faz nada, e que incapacidade de se incomodar é incapacidade de viver; e o Nirvana é um grande incômodo assimilado através de ascetismo e meditação silenciosa, e que a pobreza involuntária ou voluntária oferece uma vida próxima à vida de um santo, à beira do balcão, embora raivoso diante dos imbecis e enternecido diante dos cachorros esfomeados e dos cachaceiros e suas histórias tristes sobre uma mulher irreal e imaginária, às vezes mostrando uma foto, e me levando as poucas moedas e três ou quatro cigarros e apertando a minha mão e falando que eu era um cara gente boa, e que a gente era amigo, e eu jamais me esquivava, porque me sentia bem no meio daqueles desgraçados, porque me restava o ranço da juventude que eu usava como argumento pra dizer pra mim mesmo que eu era melhor que eles, que tinha uma mulher que me ligava às vezes, ou mandava recados, e que a gente fodia por três horas seguidas e ela até falava que amava, algumas vezes dizia que eu era o cara que a ensinou o que era gostar de alguém de verdade, seja lá o que for que ela entedia por gostar de verdade, embora aquela coisa toda fosse uma fantasia tão irreal como as mulheres nas cabeças dos cachaceiros que apertavam minha mão e me chamavam de amigo, porque no fim das contas aquela desgraçada tinha outro cara e eu era o estepe que ela usava pra descarregar as fantasias, criar uma bolha apartada da vida e todos os malditos incômodos que fazem cada um dos desgraçados sair da cama e aturar uns aos outros por aí, e eu apertava a mão daqueles desgraçados e cachaceiros porque intuía (até sentia) algo evidente; que seria eu com uma foto surrada no bolso, implorando por moedas, e apertando a mão de um rapazinho qualquer e contando essa coisa toda, que não tinha nenhum motivo pra sair cama e saia pra fumar e beber e zanzar por aí sem rumo, apertando a mão do rapazinho e dizendo que ele era gente boa e que a gente era amigo.

2 comentários:

  1. Marcos,
    Esse final circular, encorporando algo como um raciocínio, mas, que, me parece, está mais para um reconhecimento do outro, e é ao mesmo tempo um identificação e uma negação. A constatação epifânica desliza sobre si mesma, mas num desejo de escapar; e se encontra à medida que se perde.
    Gostei desse movimento narrativo e das imagens.
    bjo

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  2. Cara me faltou folego ou um ponto final a mais no final do texto... Mas eu nao sei o q eh pior, a depressao ou a solidao...

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oi.