06/05/2011

Passarinhos pra tratar

Chema Madoz

Ela tem vinte e oito anos e diz que não é feliz. Está vestida com uma dessas roupas de ginástica, num preto meio apagado, sem maquiagem nenhuma no rosto, cabelo preso, mas não consegue esconder a beleza. Quando entrou na cozinha da casa da irmã, um pouco antes, disse que não aguentava mais o cara que ela chama de monstro. É o pai do filho pequeno que está perto dela. Ela diz tudo num tom de piada, eu não vejo graça, e eu penso que deve haver algo de errado comigo. Diz que trocou um pai por outro, que tem mais medo do cara do que tinha do seu pai quando era menina. Eu estou ali por acaso e acabo ouvindo tudo sem querer. Mas não posso escapar. Ela me diz, feliz é você que não tem nenhum passarinho pra tratar. Eu não sei onde enfiar a cara, então enfio a boca no copo e acendo mais um cigarro pensando que talvez seja a hora de arranjar uns passarinhos pra tratar. 

Ela continua falando que odeia o monstro, que logo vai dar um fim nisso, mas ri sempre, sempre num tom de brincadeira e ironia leve de quem ri da vida e cujo toque do celular ou status do facebook é deixa a vida me levar, vida leva eu. E eu penso comigo que há um buraco entre aquele sorriso, aquelas palavras que ela usa, e essa realidade submissa que ela supõe estar presa. Penso em sapecar uma dessas filosofias baratas do tipo liberdade é coisa de ave, e a gente é mamífero, felicidade é desejar aquilo que se tem.

Mas não. 

Eu só consigo pensar em que tipo de passarinho seria melhor eu arranjar. Se é muita burocracia registrar um passarinho. Se requer cuidados em demasia. Quanto me custaria uma gaiola. Eu tenho um tio que fazia gaiolas, não sei se ainda faz. Talvez seja a hora de arranjar uns passarinhos pra tratar; é, talvez seja. 

Então entra uma mulher de uns cinquenta e poucos anos com brincos enormes e muito maquiada. Começa a falar sem parar de si mesma como se estivesse fazendo propaganda para algum pretendente. Sou assim, ganho tanto, fulano me disse que eu tenho uma cabeça muito boa. Vou comprar um carro e entregar na mão do sujeito que for bom pra mim. Na hora que eu quiser eu arrumo, vivo bem sozinha. Deixa a vida me levar, vida leva eu. Olho para as mãos enrugadas, cheias de anéis e esmalte, o pescoço afundando, a boca murcha, a pele viscosa, e sou levado a pensar que a vida nem sempre faz bem. 

Penso que aquela menina de vinte oito anos que se diz infeliz, deixa a vida me levar, vida leva eu, está de alguma forma ligada a essa mulher de cinquenta e poucos, mas estou meio bêbado e não consigo entender muito bem qual é a ligação. 

Há uma lacuna que não eu não consigo preencher. 

Tudo bem. 

Há pouca gente na rua quando vou pra casa. O vento me bate nas ventas e refresca um pouco as ideias, mas continuo doidejando rua afora, calculando sacos de alpiste, anilha, enviesado sobre memórias há muito tempo soterradas. O alçapão do Lindomar, pardais na mira do estilingue do Fiinho, os trinta e seis sanhaços que o Marcelo e eu  pegamos uma vez e enfiamos no viveiro do meu pai, e depois soltamos; porque a gente não ia dar conta de tratar de tanto bicho. Estou na porta de casa e ainda não sei onde é que vou arranjar uns passarinhos pra tratar, uns canários, trinca-ferro, um periquito, qualquer coisa assim. Poderia providenciar duas gaiolas e colocar ali perto da varanda. E toda manhã eles quase arrebentariam o peito numa lareia afinada e estridente, quando o sol apontasse por trás da serra, diluindo os restos de escuridão da madrugada anterior. 

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