25/05/2011

de quando buscava água com meu pai


INCREDIBILIS a creative blog by Enrico M. painter/designer


Faltava água na cidade, sempre, mas não me lembro a causa. Apenas das torneiras secas. 

A prefeitura emitia um aviso, ia faltar água por três ou quatro dias, e a caixa sobre o banheiro se silenciava. Como se obedecesse a decretos, as torneiras giravam em vão, a mangueira ressequida, esturricando no sol.

Não sei o motivo da falta d'água, porque tinha as pernas miúdas, os braços miúdos que não aguentavam carregar uma lata maior. A lata maior era meu pai quem levava, num carrinho de mão cinza escuro, o eixo mal lubrificado, que descia a ladeira da Igreja Velha, rangendo. 

Eu ia sentado na ponta do carrinho, com uma leiteirinha amassada nas bordas, apertada no colo. Lembro da imagem da estrada de cascalho à frente descendo e subindo, e quando às vezes meu pai acelerava, eu imaginava um tombo, meus joelhos esfolando no cascalho, sangue cheio de caquinhos de pedra, pontudos, grudados na pele, então apertava a borda do carrinho de mão com força, com medo. Até fechava os olhos, com medo, e não falava. Continuava quieto, apertando, segurando. Meu pai diminuía a toada e eu podia soltar as mãos, e o barulho do carrinho de mão avançando, agora lento, na estrada, o barulho dos chilenos do meu pai arrastando no cascalho, lentos, o barulho oco da lata maior rebatendo contra o metal do carrinho, me aliviava. 

Então eu podia reparar nas ranhuras da estrada. Marcas de pneus de caminhão, ferraduras de cavalos, carros, manadas de gado. E era como se as marcas trouxessem aqueles que as provocaram a presença. Como se a estrada, então vazia, fosse, aos poucos, povoada com as vacas se desviando do caminhão fumacento, e os cavalos em trotes imponentes se desviando das vacas, dos carros acelerando morro acima. 

Na curva perto do Matadouro, já dava pra ver a fila. Essa imagem real das pessoas próximas a bica soterrava meus devaneios, devaneios inspirados pelas ranhuras na estrada. Meu pai e eu assumíamos nosso lugar, esperando que a fila avançasse, para que pudéssemos encher nossas latas e tomar o caminho de volta. 

Mas meu desejo de que a fila avançasse não era tanto da água, jorrando infinita da bica, da água que ia servir para minha mãe cozinhar, para matar minha sede depois de uma partida de futebol à frente de casa. 

Eu queria mesmo era sentar na ponta do carrinho de mão - subir a ladeira de volta - e reparar as ranhuras na estrada.

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