09/05/2011

Doce de leite

O ônibus chegou meia-hora antes do previsto e ele não tinha com o que aproveitar o tempo extra, e a própria expressão tempo extra lhe pareceu inadequada diante daquela situação. Afinal, logo estariam juntos e quando estavam juntos os minúsculos duendes invisíveis, travessos e sádicos, invadiam o interior dos relógios e aceleravam os ponteiros enquanto arreganhavam os dentes, se divertindo com o desespero silencioso dela, se divertindo com o desespero nos olhos dele. No piso dois, ele pensou em entrar na livraria e procurar um exemplar de Iniciantes para presenteá-la, mas então se lembrou, pela segunda vez, que ela havia comentando algo sobre doce de leite (que, aliás, não era recomendável que ela comesse), mas isso durou só um segundo, e ele atravessou à multidão, em debandada feito gado, saindo do metrô e se espalhando no terminal lotado em função do feriado. Ele desceu na saída da Av. Cruzeiro do Sul já com o isqueiro à mão. Lá fora, embora houvesse um fiapo de sol laranja caindo sobre o concreto aos seus pés, o céu estava cinza, e o ar estava cinza, feito uma cortina semi-transparente que caísse por toda parte. O último cigarro tinha saído da sua boca três horas antes enquanto olhava para os carros cortando a rodovia, de fora do restaurante onde ele tinha visto o doce de leite e se lembrando, pela primeira vez, que ela comentou, por alto, que estava com desejo de comer doce de leite; ele pegou o vidro, fez contas de cabeça conferindo o preço, e quase levou o doce, mas então se lembrou que não era recomendável que ela comesse, em função da alergia, e ele devolveu o vidro no lugar onde estava; e ali, três horas depois, rodeado por pessoas que não se olhavam nos olhos, também fumando, ele pensou, que talvez tivesse sido mesmo uma boa ideia ter comprado aquele doce de leite. E imaginou que (caso tivesse comprado o doce de leite) mais tarde, quando estivessem no apartamento dela, ele diria, deixa que eu pego, e andaria descalço até a cozinha e pegaria o doce na geladeira, e de volta ao quarto, ele ficaria feliz ao vê-la lambuzar a boca com generosas colheradas de doce de leite, até se sentir satisfeita, e ele voltaria descalço até a cozinha, deixaria o doce de leite na geladeira e levaria um copo d'água, do qual, como era de hábito, ela beberia só a metade e abandonaria, ali, ao lado da cama, pra beber depois. Mas não tinha comprado o doce de leite, e havia esse vestido no embrulho, porque foi bater o olho: e ele viu o corpo dela lá dentro. Era parecido com aqueles vestidos que ela usava e que ele gostava tanto. E se não fosse improvável, não seria difícil crer que aquele vestido tivesse, de um modo sombrio, escapado do guarda-roupas dela e ido parar na loja. Quando acendeu o segundo cigarro no filtro do primeiro, ele se perguntou o quanto ela estava satisfeita com isso como ele supunha estar satisfeito com isso. E como essa coisa toda tinha começado num acaso demoníaco, e que agora, ele supunha, eles estavam assumindo as rédeas, espontânea e simultaneamente; um passo por vez. E era preciso estar atento aos detalhes, claro, não ficar omisso, não fazer nenhuma besteira; como era uma besteira não ter levado aquele maldito doce de leite: mesmo que não fosse recomendável que ela comesse.


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3 comentários:

  1. Olha aí, continua bom pra caralho. Previsão pra lançamento de livro de contos, chefia?
    Abraços.

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  2. Muito bom.

    E o que pior, me deixou com vontade de comer doce de leite. Eu, que nem tenho alergia... ;)

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  3. Fabrício,

    Tem uma antologia no prelo. Quando sair, aviso tudo aqui no blog.

    até.

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oi.