Um fragmento dessa beleza de texto do Martim Vasques da Cunha, sobre Liberdade do Jonathan Franzen:
"O que Ted Hughes elaborou em seiscentas páginas, eu resolvi em um parágrafo, Shakespeare precisou de 36 peças, dois poemas longos, 152 sonetos e um poema curto – e Jonathan Franzen resolveu dramatizar em mais quase setecentas folhas. Para quê tudo isso, meus amigos? Desaprendemos aquilo que Gertrudes dizia, de que brevity is the soul of the wit? Não, o que desaprendemos foi a capacidade nos espantar, independente se ele se estende para quase mil páginas ou se concentra em uma linha, e quando isso acontece, não é apenas a humanidade que perde, mas principalmente a nossa capacidade de contarmos histórias – e, claro, o tal do romance, que, como diz o termo original em inglês, deveria ser uma novidade.
O problema é que perdemos a fé no espanto de narrar, o que Chesterton afirmava ser o sense of wonder, o assombro aristotélico. Franzen tenta recuperar com sua odisséia do ressentimento subterrâneo – e que se estende por trinta anos de história americana, que vão de Jimmy Carter a Barack Obama (e eu só citei este nome para obviamente o Google captar este texto na nuvem da ignorância dos meus pensamentos) – justamente para mostrar a tragédia em que vivemos ao recusarmos o fado (e o fardo) do amor e de vivê-lo em suas conseqüências. Ao optarmos por isto, vivemos sem querer querendo o inverno de nossa existência, de nossa liberdade. Jamais saberemos o que é ser livre porque não agüentamos mais o tranco que alguém lá em cima nos deu.
Se Leontes passou por quinze anos de purgação para ter sua Hermione ressuscitada, Franzen faz o seu Walter e a sua Patty passarem por cinco antes do reencontro definitivo. Antes disso, Walter conversa com seu irmão mais velho, um sujeito rude, divorciado três vezes, com cinco filhos abandonados pelo mundo, nada a ver com o caçula que freqüentou as melhores universidades e quase se tornou diretor de uma grande organização não-governamental (a razão de seu fracasso é hilária e vale o preço do exemplar). Walter pergunta se o primogênito acha que isso é uma trajetória decente. A resposta marca a cena mais bela do romance: “Sou um homem livre”.
Ou seja, neste mundo, quem é verdadeiramente livre é quem reconhece que tem demônios a enfrentar – e vive com eles como pode. E quem cria os nossos demônios somos nós mesmos – através da recusa de amar e substituindo o amor pela inveja e o ressentimento. Em um ensaio para a New Yorker, publicado há um mês, Jonathan Franzen mostra que a competição com David Foster Wallace não foi tão amigável como parecia ser. O que estava em disputa era quem ia mais longe no horizonte da literatura, na salvação do romance como forma de recuperar a fé na condição humana. Wallace chegou perto da perfeição, segundo Franzen, e foi justamente isso que o fez pensar sobre as infinitas variações do desespero que resultam no suicídio. Ao atingir a sua meta, Foster Wallace foi trespassado pelo tédio. O que fazer quando já se está no topo? Nada e tudo, não é mesmo? Então é melhor jogar uma corda no pescoço e balançar como o pêndulo de Foucault."
Martim Vasques da Cunha, in: http://www.dicta.com.br 30 de maio de 2011.