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homem não identificado: APM |
Eu não tinha nenhuma expectativa em relação àquela prova pra recenseador em 2000.
Por isso tinha bebido além da conta no sábado. Conhaque. Vodka. O escambau. Acordei no meio da madrugada na casa da minha namorada. E sem entender muito bem o que tinha acontecido na noite anterior.
Tudo bem. Não importava o que tinha acontecido. Nunca levei muito a sério essa
coisa de tentar entender o passado. É só
um lugar que ninguém nunca visitou. Que você nunca vai visitar. Por isso há
tantos boatos sobre o passado. Boatos. Ninguém sabe porcaria nenhuma sobre o
passado.
Sei que saí sem me despedir direito. Sem
dizer nada. Talvez um grunhido, um beijo de má vontade, uma coisa assim.
Desci pelas ruas vazias,
ainda bêbado. E você não imagina como são vazias e silenciosas as ruas de uma
cidade tão miúda a essa hora da madrugada. O vigor do silêncio. De repente você está num
episódio de
O mundo sem ninguém. Nada, exceto carros e caminhões parados de
frente as casas de portas fechadas e luzes apagadas e tudo aquilo imóvel como se tudo tivesse sido abandonado.
Vidros suando
por causa do sereno. O chiado do transformador num poste de energia. E você pode ouvir os seus passos como em nenhuma outra hora. Às vezes os
grilos, ao longe. O barulho de uma televisão que dormiu ligada. E se você der sorte, muita sorte, pode topar com uma coruja
descendo em rasante, asas escancaradas, abrindo caminho no vento.
Bati na cama e já levantei como
se o tempo não tivesse passado. E se não é o sol escorrendo nos seus olhos, não
dá pra acreditar que o tempo passou. Não troquei de roupa. Não comi
nada direito. E também não precisei calçar tênis, porque ainda estavam enfiados nos pés. Conferi o dinheiro e o documento enquanto subia no rumo do ônibus,
enquanto minha cabeça martelava.
Fiz a prova nas coxas. E não lembro
muito bem dos detalhes.
Mas é certo que devo ter usado meu método infalível nas
questões de matemática. Letra C de fora a fora. E fora isso, nada. Deixei a sala e avistei uma
lanchonete do outro lado da rua. Pedi uma cerveja e duas coxinhas.
De resto, tava
tudo bem.
***
Não acreditei muito quando me
falaram que tinha passado na prova.
Eu conhecia os outros caras que estavam
concorrendo pro mesmo lugar que eu. Coisa que não é complicado num lugar onde
só há seis mil e poucas pessoas. E os caras eram caras mais velhos e mais estudados,
alguns cursando faculdade e tal, enquanto eu ainda me arrastava pra sair do
ensino médio.
E acontece que eu tinha passado lá
pelas últimas posições. Então acabei ficando com um setor fodido pra caralho. Um lugar no fim do mundo, dentro do fim do mundo. Nos limites do município. Num ermo. Ao pé da Serra do Santo Inácio.
Pra começar, o IBGE não dava
condução nem nada. Tampouco ajudinha de custo, nem gorjetinha. Porcaria nenhuma. Eu
tinha que me virar. E não era esses cacarecos de hoje, não. Era tudo analógico. Formulários e mais formulários. Mapa, pastas, meia dúzia de canetas Bic. Tudo entulhado na bolsa.
Meu pai resolveu me acompanhar no
primeiro dia. Disse que ia comigo no lugar mais complicado.
A gente pegou
carona num desses ônibus que vão pra pedreira. E foi até mais ou menos ali na
Serra Grande, um pouco antes da entrada pra pedreira do Marcinho. De lá, desceu caminhando. E foi uma hora caminhando até chegar no primeiro
ponto marcando no mapa. Uma fazenda dessas maiores, mas não me lembro do nome.
Mas me lembro muito bem da fartura do café, da gordura das lascas de queijo fresco.
Foi aí que perguntei sobre uma casinha que tava marcada no mapa. E perguntei como é que chegava lá. O cara disse que não sabia direito, que não ia muito lá pra aqueles lados. Tampouco sabia se esse homem ainda morava lá. E se a casa ainda existia.
Dois ou três sítios depois, já era hora do almoço. A gente atravessou um córrego e entrou numa mata bem fechada. Daí, entrou numa trilha cortando um pasto alto e vazio, sem sinal de criação ou qualquer coisa do tipo.
Meu pai disse que não tinha nada lá, mas que fazia muito tempo que ele não passava ali. Eu disse que tudo certo. Tudo certo e tudo bem. Mas é que tinha um sinal no mapa, porque no outro Censo alguém tinha passado ali e marcado aquela casa. Morava um homem lá.
Já deve ter morrido, disse meu pai.
Eu olhei aquela trilha cheia de mato e pensei que talvez meu pai tivesse razão.
Mas eu precisava continuar. Então a gente prosseguiu por uns vinte minutos. Chegamos numa cerca de arrame bambo, fios enferrujados e estendidos num tocos de morões podres e frouxos. Logo adiante havia um pomar, todo tomado por capim gordura, pés-de-vassoura, ervas daninhas de todo tipo.
Não tem ninguém, disse meu pai.
A gente foi avançando. E só parei ao ver a casa. Era dessas construções antigas, tijolos de adobe. Telhado colonial com telhas portuguesas, dessas grandes e largas, já escuras de lodo.
Não tem ninguém, disse meu pai.
Bati na porta e comecei a chamar.
Ouvi um barulho de ferrolho e a porta se abriu. Um homem velho, de chapéu enfiado na cabeça. A barba bem feita e bem arrumado. A mãos, bem frias, tremeram ao me cumprimentar. E ele mal me escutava. Demorou um pouco pra entender que eu era do Censo e tal.
Lá dentro, ele nos serviu um café, que tava meio frio. Porque fazia tempo, ele disse, fazia bem tempo que tinha coado. Eu já queria ir embora. Então comecei a aplicar o questionário meio com pressa.
E não me lembro dos detalhes e me arrependo de não ter feito uma cópia daquele questionário e guardado comigo. O pouco que lembro, a impressão geral da conversa <<pra cada pergunta que fazia, o homem me contava uma longa história>>, é que ele tinha três filhos que há seis anos não o visitavam. Não tinha energia elétrica, e não sabia ler. A mulher tinha morrido há uns vinte anos, e ele gostava de morar ali mesmo, sozinho. Só um rádio a pilha.
Meu pai não aguentou e perguntou pro velho o que velho ficava arrumado ali sozinho, sem luz, sem ninguém. O homem disse que cuidava de uma horta nos fundos da casa. E gostava muito do rádio. Gostava de sentar ali no fim da tarde, gostava de ficar ouvindo o rádio falar.
Não lembro de muita coisa.
No caminho de volta, meu pai, que é muito quieto, começou a falar sem parar. Falar que aquele homem tava maluco da cabeça pra ficar ali. Que tava doido de ficar ali enfurnado naquele lugar. Sem luz, sem nada. Sem ninguém. Eu ouvia meu pai falar e só pensava e ir embora. Chegar em casa, colocar uma música e ficar sozinho.
Não lembro de muita coisa. Só sei que volta e meia me pego pensado naquele velho. Sei lá. Nessa coisa de ficar sentado, sozinho, ouvindo o rádio falar.
É mais ou menos isso.