25/10/2011

"De tudo fica um pouco"

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Já tinha comentado no twitter  e no facebook. De toda forma, fica o convite.

São dezesseis autores e cada um participa com dois contos.
Os meus são Silenciosamente e A calha.

A organização é do Assis Brasil.


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O excelente trabalho de edição é da Editora Dublinense, de Porto Alegre, coordenada pelo Rodrigo Rosp, que também assina a orelha. Na quarta capa, texto do Amilcar Bettega Barbosa.

A arte da capa é do Samir Machado

Ah, aos queridos leitores de longe que não vão poder ir ao lançamento, já dá pra comprar o livro pelo site da editora.

É isso aí. : )


20/10/2011

Febre, Raymond Carver: narrar é resistir

Carver, em Iowa (1963)
Fonte: http://thisrecording.com



Eu fico cada vez mais impressionado em como o Carver consegue ser tão bom. Alguns contos não saem da minha cabeça. O mais recente é o conto Febre, que faz parte do livro Catedral, (que está incluído no estupendo 68 contos de Raymond Carver, editado pela Companhia das Letras, 2010). É a história de um professor de "Educação Artística" do "Ensino Médio", chamado Carlyle, que é abandonado pela mulher, Eileen, depois de 18 anos de relação. O casal têm dois filhos pequenos. Eileen vai embora e deixa Carlyle sozinho com as crianças.

Carlyle está bem encrencado. O conto abre com a contratação desastrosa de uma babá adolescente. Carlyle chega do trabalho e encontra as crianças no jardim de fora da casa. Há um cachorro cuja boca poderia devorar a cabeça das crianças, lambendo o rosto de uma delas. Carlyle está mesmo muito encrencado. As janelas da casa vibram com o som alto. Carlyle apanha as crianças e entra em casa. Lá dentro, se depara com adolescentes ouvindo Rod Stewart no talo e tomando cerveja. E não há nada melhor para mostrar como a vida desse sujeito está uma bagunça. Carlyle está na sala da sua casa, com as duas crianças no colo, discutindo com adolescentes bêbados (WTF? Quem são essas pessoas na minha casa?) ao som de Rod Steward (Rod Stewart, que cena). 

Carlyle precisa de alguém para ajudá-lo a colocar as coisas nos eixos. Ou, pelo menos, é isso que ele acha que precisa. 

*** 
(se você não leu o conto, não leia daqui pra baixo, contém spoilers)

O conto é narrado em terceira pessoa, mas como a focalização está em Carlyle, o filtro das impressões é orientado pela perspectiva dele. Então não sabemos muito sobre Eileen. Apenas as ligações constantes que ela faz a Carlyle (essas ligações, aliás, estão entre os melhores momentos do conto), e uma ou outra memória em tom de sumário que o narrador nos oferece. Sabemos que Eileen se envolveu com outro professor, amigo de Carlyle, e foi tentar uma obscura carreira artística. Aquele clichê de correr atrás de seus sonhos, não importe o tempo que passar. Sabemos que Eileen tinha deixado isso de lado em algum momento do passado. Essa pretensa carreira artística. E que esse desejo estoura (ou serve de vazão para outras frustrações não mencionadas), no meio da rotina maçante e sufocante. Ela aborta a relação e vai seguir seus sonhos juvenis, sem se importar muito com Carlyle ou com as crianças (embora sempre insista em dizer que se importa). 

*** 

Tem uma mulher chamada Carol, com quem Carlyle tem saído. Uma colega de trabalho. Mas há uma grande fissura nessa relação. Por mais que Carlyle tente, ele nunca consegue estar totalmente com Carol. Há uma cena que ilustra bem essa passagem. Os dois estão sozinhos na casa de Carlyle e o telefone toca. É Eileen ligando (o passado ligando e atormentando Carlyle). Carlyle sabe disso e não quer atender. Mas Carol diz que talvez seja algo importante (algo mais importante que ela). E Carol diz isso e vai embora. 

*** 

Mas a personagem mais cativante do conto é a Sra. Webster. Uma babá já de idade que é indicada por Eileen. A Sra. Webster cuida das crianças, cuida de Carlyle. A Sra. Webster faz bolinhos, a Sra. Webster é quase uma mãe. Bendita seja a Sra. Webster.

O aparecimento da Sra. Webster no conto coloca as coisas nos eixos. É exatamente aquilo que Carlyle precisava. Quase um Messias. E a tensão da narrativa aponta para uma solução. Mas logo Carlyle cai numa crise de febre, fica afastado da escola, e as coisas começam a complicar. Já não bastasse a febre que toma conta de Carlyle, a Sra. Webster diz que precisa ir embora. Ela e o Sr. Webster arranjaram empregos em outro estado e não podem recusar. Porque o Sr. Webster já está velho e há muito tempo está desempregado. E é aqui que vem a cena final do conto, onde Carlyle narra sua história com Eileen para o Sr. e a Sra Webster. Mas não sabemos dos detalhes. A narrativa dessa história não vem em primeiro plano. Aparece apenas como sumário. 

*** 

Carlyle revive a perda da mulher ao perder a Sra. Webster. E é essa segunda perda que permite a Carlyle livrar-se da primeira. Livrar-se de vez, narrando a história toda. Só assim acontece a mudança da personagem. Não é à-toa que a história de Carlyle e Eileen não aparece em primeiro plano, aparece apenas como sumário. Carlyle narra para si mesmo. É ele quem precisa entender as coisas, não seus interlocutores. Carver mostra isso com a descrição das crianças, sentadas, ouvindo o pai contar tudo, como se prestassem atenção e estivessem entendendo. Mas aquela experiência é impossível de ser transferida, impossível de ser narrada ao outro (essa incapacidade dizer para outro, está por exemplo no conto Catedral, onde um sujeito tenta inutilmente descrever a um cego de nascença uma catedral). Ninguém entende e nem precisa entender os detalhes da questão, apenas Carlyle.

*** 

Narrar para superar. É mais ou menos isso que está ali. 

De toda forma, desde sempre os homens narram para tentar expulsar o caos e o vazio das suas vidas. Seja nas narrativas mitológicas das diversas culturas, nos causos, mentiras, canções, narrativas religiosas, na literatura. A memória, por exemplo, é essencialmente narrativa. E por isso mesmo sempre nos prega peças. Deixa as coisas mais suportáveis e mais bonitas. E se não fosse assim, talvez não suportássemos. 

A gente narra para empurrar o caos para longe. Narra contra o vazio à espreita. Narra à beira do abismo. E o vazio não é outra coisa senão a falta de limites. O sentido só existe a partir do limite. 

Narrar é limitar, limitar é definir, tentar colocar as coisas nos seus devidos lugares. Fora do limite, o vazio que engole tudo. Feito o Nada, em A História sem fim. Aquele cão devorando montanhas e rios, memórias e nomes, esvaziando o interior das pedras. Ele sempre esteve aí, sempre vai estar. 

De resto, não há sentido nenhum nessa coisa toda. Senão esse sentido que a gente tenta encontrar, a conta-gotas. Nunca é definitivo, claro. Mas narrar é resistir, e talvez uma das melhores formas de resistir.


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17/10/2011

Monólogos em colisão

Prastene Pohadky, from the collection of Sam Smith
via: 50watts.com




1) A melhor coisa do mundo seria se bastar a si mesmo. Na verdade, a melhor coisa seria nunca ter existido. Mas já que estamos aqui, se bastar a si mesmo estaria de bom tamanho.

2) Ficar sozinho e sem nenhuma relação mais profunda com ninguém. O silêncio da água jorrando sobre a pia enquanto você lava um prato, sozinho. Estirar-se no sofá porque não há ninguém pra sentar do seu lado. Escolher o filme que você quer, sem atrito, no cartaz do cinema ou na locadora, só com suas próprias dúvidas. E ninguém pra perturbar seu sono na cama de casal grande e espaçosa. Nenhum barulho de passos na casa sem ninguém, cheia de plantas. Cadeiras vazias. Vidros limpos e estantes brancas. E mais nada.

3) E se tudo correr mais ou menos bem, uma hora ou outra, você vai sacanear quem você mais ama. Ou vai  levar chumbo de quem diz te amar. E no fim, carregar um caixão e velar um corpo. Ou ser velado por quem mais te ama. Em ambos o casos, sozinho.

4) A gente precisa da alteridade, mas é uma alteridade apenas de identificação: "aquela pessoa não sou eu", em alguns casos: "ainda bem que aquela pessoa não sou eu".  E mais nada.

5) Mônadas opacas e fechadas, cuja única coisa em comum é essa ilusão de estar vivendo ao mesmo tempo. Mas até o tempo tem o ritmo do dono do relógio. Por isso há tanta assimetria. No máximo, estamos aqui vivendo vidas paralelas, esbarrando nas arestas uns dos outros. Ninguém se comunica. Basta se aproximar demais pra perceber o quanto não sabemos nada sobre ninguém. O quanto aquela pessoa legal é estranha, irredutível. Fechada em si mesmo como uma pedra. O quanto você mesmo é uma pedra. E seja pelo filme em cartaz, o estilo da música no rádio, a gente termina falando e falando, ouvindo e ouvindo, batendo cabeça contra cabeça e percebendo que ninguém comunica nada.

6) Só monólogos em colisão.

7) Pedras entre pedras, batendo umas contra as outras.

8) E no fim, apenas o pó.

10) Ideal seria se bastar sozinho. Mas não dá. 


14/10/2011

"o nosso caso é duvidoso"

"Os homens só se convencem das nossas razões, da nossa sinceridade e da gravidade das nossas penas, com a nossa morte. Enquanto vivos, o nosso caso é duvidoso, não temos direito senão ao ceticismo."

Albert Camus, In: A queda





Animação feita por Mike McCubbins para o romance A queda, de Albert Camus. Via Casmurros


13/10/2011

Concurso Guimarães Rosa 2011


Tive um conto selecionado no Concurso Guimarães Rosa (2011), da IV Jornada Guimarães Rosa, organizado pela Sobrames-MG – Sociedade Brasileira de Médicos Escritores.

Mais informações sobre o evento, que acontecerá nos dias 14, 15, 16/10 em BH: aqui.

É isso.

07/10/2011

Gostava de ficar ouvindo o rádio falar


homem não identificado: APM


Eu não tinha nenhuma expectativa em relação àquela prova pra recenseador em 2000.

Por isso tinha bebido além da conta no sábado. Conhaque. Vodka. O escambau. Acordei no meio da madrugada na casa da minha namorada. E sem entender muito bem o que tinha acontecido na noite anterior.

Tudo bem. Não importava o que tinha acontecido. Nunca levei muito a sério essa coisa de tentar entender o passado. É só um lugar que ninguém nunca visitou. Que você nunca vai visitar. Por isso há tantos boatos sobre o passado. Boatos. Ninguém sabe porcaria nenhuma sobre o passado.

Sei que saí sem me despedir direito. Sem dizer nada. Talvez um grunhido, um beijo de má vontade, uma coisa assim.

Desci pelas ruas vazias, ainda bêbado. E você não imagina como são vazias e silenciosas as ruas de uma cidade tão miúda a essa hora da madrugada. O vigor do silêncio. De repente você está num episódio de O mundo sem ninguém. Nada, exceto carros e caminhões parados de frente as casas de portas fechadas e luzes apagadas e tudo aquilo imóvel como se tudo tivesse sido abandonado.

Vidros suando por causa do sereno. O chiado do transformador num poste de energia. E você pode ouvir os seus passos como em nenhuma outra hora. Às vezes os grilos, ao longe. O barulho de uma televisão que dormiu ligada. E se você der sorte, muita sorte, pode topar com uma coruja descendo em rasante, asas escancaradas, abrindo caminho no vento.

Bati na cama e já levantei como se o tempo não tivesse passado. E se não é o sol escorrendo nos seus olhos, não dá pra acreditar que o tempo passou. Não troquei de roupa. Não comi nada direito. E também não precisei calçar tênis, porque ainda estavam enfiados nos pés. Conferi o dinheiro e o documento enquanto subia no rumo do ônibus, enquanto minha cabeça martelava.

Fiz a prova nas coxas. E não lembro muito bem dos detalhes.

Mas é certo que devo ter usado meu método infalível nas questões de matemática. Letra C de fora a fora. E fora isso, nada. Deixei a sala e avistei uma lanchonete do outro lado da rua. Pedi uma cerveja e duas coxinhas.

De resto, tava tudo bem.

*** 

Não acreditei muito quando me falaram que tinha passado na prova.

Eu conhecia os outros caras que estavam concorrendo pro mesmo lugar que eu. Coisa que não é complicado num lugar onde só há seis mil e poucas pessoas. E os caras eram caras mais velhos e mais estudados, alguns cursando faculdade e tal, enquanto eu ainda me arrastava pra sair do ensino médio.

E acontece que eu tinha passado lá pelas últimas posições. Então acabei ficando com um setor fodido pra caralho. Um lugar no fim do mundo, dentro do fim do mundo. Nos limites do município. Num ermo. Ao pé da Serra do Santo Inácio.

Pra começar, o IBGE não dava condução nem nada. Tampouco ajudinha de custo, nem gorjetinha. Porcaria nenhuma. Eu tinha que me virar. E não era esses cacarecos de hoje, não. Era tudo analógico. Formulários e mais formulários. Mapa, pastas, meia dúzia de canetas Bic. Tudo entulhado na bolsa.

Meu pai resolveu me acompanhar no primeiro dia. Disse que ia comigo no lugar mais complicado.

A gente pegou carona num desses ônibus que vão pra pedreira. E foi até mais ou menos ali na Serra Grande, um pouco antes da entrada pra pedreira do Marcinho. De lá, desceu caminhando. E foi uma hora caminhando até chegar no primeiro ponto marcando no mapa. Uma fazenda dessas maiores, mas não me lembro do nome. Mas me lembro muito bem da fartura do café, da gordura das lascas de queijo fresco.

Foi aí que perguntei sobre uma casinha que tava marcada no mapa. E perguntei como é que chegava lá. O cara disse que não sabia direito, que não ia muito lá pra aqueles lados. Tampouco sabia se esse homem ainda morava lá. E se a casa ainda existia.

Dois ou três sítios depois, já era hora do almoço. A gente atravessou um córrego e entrou numa mata bem fechada. Daí, entrou numa trilha cortando um pasto alto e vazio, sem sinal de criação ou qualquer coisa do tipo. 

Meu pai disse que não tinha nada lá, mas que fazia muito tempo que ele não passava ali. Eu disse que tudo certo. Tudo certo e tudo bem. Mas é que tinha um sinal no mapa, porque no outro Censo alguém tinha passado ali e marcado aquela casa. Morava um homem lá.

Já deve ter morrido, disse meu pai.

Eu olhei aquela trilha cheia de mato e pensei que talvez meu pai tivesse razão.

Mas eu precisava continuar. Então a gente prosseguiu por uns vinte minutos. Chegamos numa cerca de arrame bambo, fios enferrujados e estendidos num tocos de morões podres e frouxos. Logo adiante havia um pomar, todo tomado por capim gordura, pés-de-vassoura, ervas daninhas de todo tipo.

Não tem ninguém, disse meu pai.

A gente foi avançando. E só parei ao ver a casa. Era dessas construções antigas, tijolos de adobe. Telhado colonial com telhas portuguesas, dessas grandes e largas, já escuras de lodo.

Não tem ninguém, disse meu pai.

Bati na porta e comecei a chamar.

Ouvi um barulho de ferrolho e a porta se abriu. Um homem velho, de chapéu enfiado na cabeça. A barba bem feita e bem arrumado. A mãos, bem frias, tremeram ao me cumprimentar. E ele mal me escutava. Demorou um pouco pra entender que eu era do Censo e tal.

Lá dentro, ele nos serviu um café, que tava meio frio. Porque fazia tempo, ele disse, fazia bem tempo que tinha coado. Eu já queria ir embora. Então comecei a aplicar o questionário meio com pressa.

E não me lembro dos detalhes e me arrependo de não ter feito uma cópia daquele questionário e guardado comigo. O pouco que lembro, a impressão geral da conversa <<pra cada pergunta que fazia, o homem me contava uma longa história>>, é que ele tinha três filhos que há seis anos não o visitavam. Não tinha energia elétrica, e não sabia ler. A mulher tinha morrido há uns vinte anos, e ele gostava de morar ali mesmo, sozinho. Só um rádio a pilha.

Meu pai não aguentou e perguntou pro velho o que velho ficava arrumado ali sozinho, sem luz, sem ninguém. O homem disse que cuidava de uma horta nos fundos da casa. E gostava muito do rádio. Gostava de sentar ali no fim da tarde, gostava de ficar ouvindo o rádio falar.

Não lembro de muita coisa.

No caminho de volta, meu pai, que é muito quieto, começou a falar sem parar. Falar que aquele homem tava maluco da cabeça pra ficar ali. Que tava doido de ficar ali enfurnado naquele lugar. Sem luz, sem nada. Sem ninguém. Eu ouvia meu pai falar e só pensava e ir embora. Chegar em casa, colocar uma música e ficar sozinho.

Não lembro de muita coisa. Só sei que volta e meia me pego pensado naquele velho. Sei lá. Nessa coisa de ficar sentado, sozinho, ouvindo o rádio falar.

É mais ou menos isso.

05/10/2011

O Sol, Abraão e "A Cicatriz de Ulisses"

"5. E o sol desponta e o sol se põe
E ao mesmo ponto
Aspira de onde ele reponta


6. Vai rumo ao sul
e volve rumo ao norte
Volve revolve e o vento vai
e às voltas revolto o vento volta

7. Todos os rios correm para o mar
e o mar não replena
Ao lugar onde os rios acorrem
para lá de novo correm




8. Tudo tédio palavras
como dizê-lo em palavras
O olho não se sacia de ver
e o ouvido não se satura de ouvir


9. Aquilo que já foi é aquilo que será
e aquilo que foi feito é aquilo que será
e aquilo que foi feito aquilo se fará
E não há nada de novo sob o sol".


Qohelet/ O-que-sabe, Haroldo de Campos. Cap. 1: 5-9.

Eclesiastes, 1: 5-9.


***

Abraham and Isaac (1783), William Blake


"A singularidade do estilo homérico fica ainda mais nítida quando se lhe contrapõe um outro texto, igualmente antigo, igualmente épico surgido de um outro mundo de formas.Tentarei a comparação com o relato do sacrifício de Isaac, narração inteiramente redigida pelo assim chamado Eloísta. Na versão King James, a introdução vem assim traduzida: 'Depois disto, Deus provou Abraão. E disse-lhe: Abraão! - Eis-me aqui, respondeu ele.' Já este princípio nos deixa perplexos, quando viemos de Homero. Onde estão os dois interlocutores? Isto não é dito. Mas o leitor sabe muito bem que normalmente não se acham no mesmo lugar terreno, que um deles, Deus, deve vir de algum lugar, deve irromper de alguma altura ou profundeza no terreno, para falar com Abraão. De onde vem ele, de onde se dirige a Abraão? Nada disto é dito. Ele não vem, como Zeus ou Posseidon, das Etiópias, onde se regozijara com um holocausto. Nada se diz, também, da causa que o movera a tentar Abraão tão terrivelmente. Ele não a discutira, como Zeus, com outros deuses, numa assembléia, em ordenado discurso; também não nos é comunicado o que ponderara no seu próprio coração; inesperada e enigmaticamente penetra na cena, chegado de altura ou profundeza desconhecidas e chama: 'Abraão!' A noção judaica de Deus não é somente causa, mas antes, sintoma do seu particular modo de ver e de representar. Isto fica ainda mais claro, quando nos voltamos para o outro interlocutor, Abraão. Onde está ele? Não o sabemos. Ele diz, contudo: 'Eis-me aqui'."

A Cicatriz de Ulisses, Mímeses, Erich Auerbach, São Paulo: Perspectiva, 4ª. ed. 1998.