30/11/2010

A passagem tensa dos corpos, Carlos de Brito e Mello

Desocupado leitor: tenho que lhe informar que o livro A passagem tensa dos corpos, Carlos de Brito e Mello (Cia das Letras, 2009), não deve passar em branco. O sr. Brito e Mello merece ocupar nosso tempo com a leitura de seu livro, construído à partir da premiação concedida pela Secretaria de Cultura do nosso sertão, Prêmio Minas Gerais de Literatura 2008, na categoria jovem escritor mineiro (quando essa categoria ia além dos vinte e cinco anos). A passagem tensa dos corpos esteve entre os finalista do Portugal Telecom 2010, no Prêmio São Paulo de Literatura 2010, categoria autor estreante, e Jabuti, na categoria romance. Para além do prêmio e indicações, devemos nos ocupar da leitura dessas 249 páginas, por se tratar de um livro de enredo bem criativo e de um trato especial com a linguagem.

O sr. Brito e Mello utiliza-se de um narrador fantasma, inicialmente com caracteres de narrador testemunha, lançado numa cruzada à caça de óbitos pelo interior de Minas Gerais, para nomeá-los, catalogá-los, até que se vê preso ao fato inusitado de uma família atípica que amarra seu morto à mesa de jantar e não confere enterro ou quaisquer ritos de passagem. Sem os ritos de passagem, o morto não é morto, e não pode ser nomeado e apropriado pelo narrador através do discurso. Pelas características de narrador testemunha apresentadas no início, o leitor é levado a inferir que o narrador desencorporado irá narrar episódios dessa família perturbada(coisa que até o faz quando entediado, já que a ausência de enterro impede que o processo natural de nomear mortes avance, mesmo que o narrador continue catalogando outras mortes como se o óbito ignorado não fosse um impasse). Nesse momento o leitor fica meio confuso, por que se o morto sem enterro é um impasse, um conflito que prende o narrador àquela casa da enviuvada que não enviúva, da filha que destrincha revistas de noivas à procura de um noivo, do rapaz trancado no quarto, por que os óbitos continuam a ser catalogados? Isso talvez se explique em algum ponto da narrativa que tenha passado desapercebido desse leitor ou no próprio final, que claro, não vou revelar aqui, mas não deixa ser uma pequena confusão narrativa(a mim pelo menos escapou alguma justificativa mais forte para esse escorregão). Uma solução(penso) seria encarar as nomeações das mortes como flashbacks, mas como o narrador não dá nenhuma indicação que a nomeação das mortes posteriores ao encontro com morto amarrado à mesa de jantar sejam memórias, não sei se seria uma saída.

Apesar de apresentar características de uma narrativa absurda, não podemos enquadrá-lo num realismo fantástico ou pelo menos não à maneira de um Oswaldo França Júnior ou Rubião, por exemplo. Porque mesmo se tratando de uma espécie de fantasma ou morto, as justificativas para narrativa são por demais evidentes, por vezes filosóficas, metanarrativas e metaliterárias, explícitas demais, portanto, escapam à qualquer clima ou atmosfera de desconforto. A tensão do livro é uma tensão estética, uma tensão focada na linguagem em detrimento das personagens, elevando o papel da narrativa como construção de sentido(da própria narrativa) às suas últimas consequências. Através da narrativa o narrador fantasma literalmente toma corpo, assume materialidade. Essa é a tese que permeia toda à obra, é a partir dessa tese, por exemplo, que as frases são picadas, numa diagramação muito própria.

No meu gosto particular, a prosa poética num romance não deve sonorizar por sonorizar, pintar imagens como quem enfeita por enfeitar, como quem solta fogos de artifício numa segunda-feira de manhã, ou vai na padaria de sapato de salto, vestido longo vermelho fogo, a pasta de maquiagem escorrendo do rosto. A prosa poética, num romance, creio, deve sondar algo que não se compreende. Demonstrar tensão e desconforto. A linguagem deve assumir tons poéticos quando falamos daquilo que é turvo, nebuloso, daquilo que não compreendemos, daquilo que escapa à compreensão e não é passível de ser encaixotado numa prosa direta. Quando a prosa se vê no escuro de um beco sem saída, a poesia salta à frente e desvela. 

E o quê é desvelado através da prosa poética do narrador de A passagem tensa dos corpos?

Desvela seu próprio discurso autoconstitutivo, devorador de restos(deixa de ser um narrador testemunha e passa a narrar a si mesmo-discurso).

“Quando eu tiver uma cabeça, nela produzirei pensamentos inteiros”, nos diz o narrador. Quando tornar-se inteiro, não será mais necessário narrar, porque toda narrativa é recorte; quando o narrador se preenche por inteiro, a narrativa implode, cessa seu fluxo, deixa de existir.

O narrador não aprofunda muito no seu próprio conflito, ou pelo menos, não conduz seu conflito de modo a provocar uma tensão que oscile gradativamente ao longo do texto. O conflito é diluído de maneira quase uniforme na própria linguagem. E mesmo que diga não ter pensamentos inteiros, algumas explicações são muito evidentes:

"sou uma morte atualizada permanentemente pela palavra, que, mencionada
expressa que morro diariamente"
(...)
"sem o contorno ou a substância normais, faltarei a mim mesmo"
(...)
"o trabalho da língua é o que me mantém
na passagem tensa de um corpo
entre a morte, recolhendo dela o aspecto horrível, mas necessário"

A preocupação estilística é maior que a preocupação com as personagens, há quase ausência de conflitos, não há uma sondagem mais elaborada dessas figuras peculiares que prendem o morto à mesa de jantar, ou uma sondagem mais perturbadora da sua própria condição. Apesar dos fatos serem inusitados, falta transtorno. Isso é um pouco frustante, porque um leitor como eu sempre espera sair de um livro um pouco impregnado das suas personagens.

Mas, por favor, não se engane com meus pitacos, o livro é muito bom.


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Enquanto escrevia o romance, Brito e Mello manteve um blog: aqui
(interessante ler esse blog depois de ler o livro...)

Carlos de Brito e Mello no Entrelhinhas.

23/11/2010

A calha

Mal assentada, torta, inclinada na direção da entrada do bar, despejando para dentro do bar à medida que chovia, forte, a calha mal assentada, muito alta, jorrava para dentro do bar e o dono do bar, nomeado João do Bar, tentava conter a enxurrada, jorrando para dentro do bar, à medida que chovia  mais forte, cada vez mais forte, João do Bar lutava, munido daquele rodo velho, um pano de chão encardido, tentava conter a enxurrada jorrando através da fresta na base inferior da porta, sobre o piso de nata amarela, naquele bar à beira da estrada, entre Três Corações e São Tomé das Letras, João do Bar, com seu olho furado, tão cego quando o pedreiro que assentou aquela calha mal assentada, despejando para dentro do bar à medida que chovia cada vez mais forte, muito forte, mais intenso, com relâmpagos consecutivos, trovões vigorosos que estremeciam o vitrô ao fundo do bar, ameaçando estraçalhar o vitrô em dezenas, centenas de pedaços, à medida que chovia cada vez mais forte, mais grosso, com mais intensidade, à medida que a enxurrava se formava diante da porta do bar, por causa da calha mal assentada, naquele bar, à beira da estrada, entre Três Corações e São Tomé das Letras, João do Bar, o dono do bar, com seu rodo velho, borracha ressecada, um pano de chão ensopado, encardido, tentando conter a enxurrada que avançava, as calças ensopadas, cobrindo todo o piso de nata amarela, cada vez num volume mais intenso, num volume maior, contra aquele rodo que agora lhe parecia(ao João do Bar), algo ridículo, inútil, como os dois meninos em cima da mesa de sinuca, o maior olhando sair debaixo da porta, o menor com as mãos nos ouvidos, olhos piscando à medida que vinha um trovão, à media que chovia mais forte, a borracha do rodo riçando no chão, encoberta pela enxurrada que avançava, e o menino menor gritando, por causa dos trovões e também da violência do fluxo, cada vez mais forte, do vitrô tremendo, quase se partindo, e João do Bar, com o rodo na mão, caminhado em direção à porta, com o rodo na mão, aquela borracha ressecada, o pano encardido enrolado na ponta do rodo, jorrando por debaixo da porta, e João do Bar quase na porta, e empurrando a porta, com certo esforço por causa da força da enxurrada cada vez mais forte, cada vez mais intensa, jorrando por debaixo da porta, por causa da calha mal assentada, que a primeira pancada não conseguiu afetar(isso enfureceu o João do Bar), praguejou barulhos bestializados, urros no meio daqueles relâmpagos, da enxurrada que jorrava por suas coxas, que o menino menor viu lá de dentro, sem escutar, com os ouvidos tapados, gritando, ouvindo só os próprios gritos, vendo o flash dos relâmpagos, consecutivos, e as lascas do rodo partido, pela metade com a segunda pancada, e João do Bar tascando a mão na calha, jorrando nas coxas, para dentro do bar, o vitrô estremecendo com aqueles trovões, as veias do pescoço estufadas, puxando a calha, à medida que jorrava, a calha não saia (isso irritou muito mais o João do Bar), sentiu que aquela calha não ia sair, forçou ao máximo, a calha não arredava, estava muito bem assentada apesar do defeito, sentiu a velhice cair sobre seus braços, bufando, os trovões, seu olho furado, velho, um maldito de um velho, a enxurrada avançando para dentro do bar, avançando sem que ele(João do Bar, um velho), fosse capaz de conter, os meninos em cima da mesa de sinuca olhando o velho, incapaz de conter a enxurrada; desistiu.

Entrou no bar, sentou na mesa de sinuca, bufando ainda, resignado, roupa ensopada, escorrendo na testa, do cabelo encharcado, caindo da ponta da calça, à media que jorrava para dentro do bar, formando um lago.

Então desceu da mesa, o menino menor pregou os olhos nele, no João do Bar, que sumiu aos fundos do bar. Voltou com uma marreta. O menino menor acompanhado com os olhos; ouviu aquele barulho de lata retorcendo, três pancadas consecutivas, esgotando o fluxo a cada pancada; e o João do Bar arrastar aquela calha para o meio da estrada, erguer a marreta e bater, bater naquele pedaço de lata, três, quatro, cinco vezes, bufando, à medida que chovia, no meio daquela chuva, o vitrô tremulando, veia do pescoço estufada, batendo. Os meninos olhando aquilo. Olhando quando João do Bar parou de bater, a marreta dependurada no braço, ensopado, no meio da estrada, virou o pescoço para os meninos: quase sorrindo, escorrendo no rosto, cabelo, ensopado, quase mostrando os dentes, ofegante e suspirou(quase sem dizer): fédaputa.


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22/11/2010

Da personagem que pensa demais


Sou levado a interrogar em que medida as primeiras leituras feitas na vida, as primeiras leituras que realmente marcam, aquelas leituras que são qualificadas como leituras de formação, são difíceis de se abandonar.

Primeiras leituras, leituras de formação, chamem como quiserem, essas que nos afetam de tal maneira que levamos anos para digerir. Porque pra quem tem essa pretensão de escrita, elas não são apenas responsáveis pelo gosto norteador das leituras posteriores; essas leituras de formação meio que encarnam na nossa escrita. Porque, afinal, é partir delas que começamos, são a matéria prima do nosso fazer. Ou o instrumento do fazer. Como a criança que imita frases ou expressões dos adultos, mesmo que não entenda muito bem o sentido daquelas frases; até que a criança seja capaz de formar suas próprias frases, sua própria linha de pensamento.

Mas é possível se livrar realmente dessas falas? Não ecoam lá no fundo?

Porque, afinal, a criança não só imita o modo de falar, imita também os assuntos, aquilo que os adultos falam. E se livrar dos assuntos, acho, é mais penoso do que se livrar da forma de falar. Como alguma coisa que gruda, como uma geleia grudenta daquele conto "Hereditário" do Amilcar Bettega.

Em alguns momentos me sinto meio que obsediado por aquelas primeiras leituras, pelas leituras de formação; mesmo que o esforço de rejeição seja forte; mesmo que em tese meus argumentos e ideias tenham superado aquilo que aquelas leituras impingiram. É difícil se livrar delas. Não falo nem dos maneirismo, ou cacoetes de linguagem, numa imitação de estilo daqueles autores que carregava debaixo do braço, porque esse tipo de imitação talvez seja por demais evidente e fácil de superar; ou pelo menos aparentemente fácil. Falo de um outro vício, dessas ideazinhas, do hábito dos personagem por uma certa postura reflexiva, um certo afastamento à realidade, um ímpeto para questionar, entender suas razões de ser, de estar no mundo, essas bobagens, essa veia pseudo-metafísica, pseudo-existencialista, com seus problemas típicos: liberdade, verdade subjetiva, solidão, esses tipos sem importância buscando razões para encontrar sua importância nesse mundo sem razão e sem importância.

A construção desses tipos, sempre se dá de dentro para fora, alguma coisa que flui de uma espécie de centro de abertura desse personagem, do núcleo da personagem; com um que de defeito e vai engolindo tudo ao redor, questionamento à medida que alarga, que expande, feito um vazamento, vai alagando tudo, desconstruindo ideias, colocando dúvidas, vai dissolvendo as coisas concretas, tornando tudo pastoso, líquido, dissolvendo tijolos, pedras, dissolvendo o esqueleto do próprio personagem. E fica só um grande núcleo, essa voz do personagem, falando tanto que não diz nada, falando no centro de um grande oco, esvaziando o próprio sentido das palavras, e fica só esse desespero sem saída, ruminando, ruminando; e porque o personagem já engoliu tudo e fica sem alteridade, fica tudo igual e vazio, um personagem escorrendo por todos os lados, igual por todos os lados, sem distinção, e que no fim das contas, sem encontrar onde se reconhecer, se apega ao silêncio como última saída de alteridade, e eu, me apego ao silêncio dessa personagem e também me calo.

Cansei de personagens que pensam demais.

20/11/2010

68 contos de Raymond Carver: um elogio à Carver




A leitura de 68 contos de Raymond Carver, tradução de Rubens Figueiro (Cia das Letras, 2010) tem sido das mais prazerosas. A introdução de Rodrigo Lacerda, que levanta a trajetória de Carver, desde as publicações em revistas literárias independentes, dificuldades para concluir sua formação, até a consagração, a relação com os editores, os cortes excessivos no texto, o estigma de minimalista, é sensacional. Principalmente para um caipira como eu, que chega tarde à obra e ao vasto universo de produção de um dos maiores contistas modernos.

Duas coisas me levaram até Carver. A epígrafe de Deixe o quarto como está (Cia das Letras, 2002) excelente livro do Amilcar Bettega, e a leitura de contos esporádicos, alguns na internet, outros da mão de amigos, em rápidas ocasiões. Nem por isso deixaram de me impressionar.

Chego a levantar a tese que, num único texto, podemos encontrar o eidos da verve literária de cada escritor, o tal do estilo. Como algo que perpassa toda a obra do autor e que por isso mesmo assume a nomenclatura de obra, como edifício, ou pirâmide, como diria Guimarães Rosa. Chego a levantar a hipótese de que em alguns casos, essa obra pode ser decomposta, pode ser decomposta como uma espécie de fractal. Sou levado apressadamente a pensar assim sobre a produção de Carver. Porque Visor me impressionou muito, e a cada conto que leio desses 68 contos, "Eu conseguia enxergar as menores coisas", "Por que não dançam?", "Você é médico?", "Penas", "Mecânica popular" só pra citar alguns, (ainda não li todos) sinto a mesma força narrativa daquela que senti ao ler Visor. Claro, um autor acaba se refazendo à medida que produz, cada vez que enfrenta um novo texto, não apenas o texto é outro, mas esse autor já é outro. Os desafios impostos a si mesmo são outros, a necessidade e  os problemas daquela criação em particular são outros. Isso termina refletido no texto e, de certa forma, é essa intenção/resultado movediço que provoca a habitual divisão da obra de muitos escritores, esse é o caso de Carver, naquele dualismo costumeiro das duas fases. Geralmente uma fase de preparação, onde a prosa é incompleta; e uma fase de composição mais madura, apurada, supostamente impecável. Como se, de um dado momento em diante, o escritor atingisse o cume de sua formação, encontrasse uma espécie de graça ou truque infalível.

Não sei.

Carver me parece Carver em todos os contos que li até agora. Carver me parece Carver desde “Estações tempestuosas”, com longas descrições de ambientes, carregado de detalhes e ações, profundamente sensorial, cromático e sonoro; como se Carver desejasse “realmente” criar um ambiente, preencher todas as lacunas desse espaço, dar a justa medida de cada coisa; como se (aqui tenho que admitir a hipótese do escritor partido ao meio) o primeiro impulso do escritor criativo (diferente do escritor de impulso imitador ou impulso expressivo)*, fosse dar força objetiva à criação a partir desse realismo. Criar “realmente” um espaço de ficção. Cavar seus fundamentos, estruturas, compor cada detalhe. Claro, é algo impossível. Nenhum texto literário é capaz de emular a realidade em sua totalidade. Parafraseando um parco chavão/slogan de Sartre, todo escritor tenta ser uma espécie de Deus, criar um mundo capaz de prescindir desse mundo real; portanto, fracassa. Penso em Sartre equivocado; apesar desse aforismo soar bonito. Nem toda literatura parte dessa pretensão horrorosa. E muito menos nega in absoluto essa pretensão (o que dá no mesmo, já que o oposto, nada mais é, que outro lado da moeda daquilo que é negado). Afinal, uma negação ab aeterno do realismo, termina por ser uma fantasia real: o que é, necessariamente, o mais bizarro dos realismos.

Penso na obra de Carver composta a partir da estrutura dos fractais. Suponho um suposto Carver no ápice de sua criação, o Carver supostamente maduro, da segunda fase, assimilando essa estrutural fractal e compondo a partir dela. Suponho Carver numa epifania diante da realidade, compreendendo a realidade a partir da geometria fractal, suponho Carver efetuando recortes, arrancando lascas do real, gomos, criando a partir dessas lascas; ciente de que cada lasca comporta toda estrutura.


Não imagino Carver como mais um escritor partido ao meio. Vejo a mesma fissura, vejo essa ligação. Mas não suponho Carver como um monólito imóvel e imutável. Cada Carver é um Carver e no meu elogio à Carver, imagino o próprio Carver como um fractal.

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Escritor de impulso imitador: aquele que começa a escrever por imitação, geralmente de um autor ou gênero em particular.

Escritor de impulso expressivo: aquele que começa a escrever por certa necessidade de expressar-se, colocar pra fora, desabafar.

Escritor de impulso criativo: aquele que começa a escrever por necessidade da criação por si mesma, por fruição da criação.

18/11/2010

Do conto genial que eu não escrevi


Sempre aparece uma ideia de um conto.

Conto do cara que sai pra comprar cigarro e nunca mais volta, do personagem obcecado pela janela ou pelo espelho, um desses contos que surgem como ideias geniais na cabeça (como o mundo das ideias é perfeito), e logo se vai distribuir frases cuidadosas, abrir o parágrafo com a descrição minuciosa de uma tempestade que assola uma cidade sem nome, ou o maravilhoso nascer ou pôr do sol, tingido as coisas de laranja, aquelas nuvens bonitas que dói; a cena de sexo mecânico num apartamento de uma grande cidade, o casalzinho adolescente e seus típicos tropeços de relacionamento; jovens com crises existenciais, o diálogo truncado e cheio de subtendidos, e  o amor que termina, com ou sem boom no final.

Tudo bem.

Logo se vê o descabimento, os clichês e se abandona a bobagem. (como o mundo das ideias é delicioso, não?)

Mas dessa vez a ideia era boa. Ou pelo menos imponente de um modo obsessivo.

Um carrapato de ideia.

Passei dias pensando nesse conto. Entrava no banho e estava lá  o conto, debaixo do sabonete. Ia comer, e encontrava o maldito do conto no meio do arroz com feijão, debaixo da folha de alface. Uma desgraça impertinente essa ideia. Espantava o apetite. Emagreci uns dois quilos mais ou menos. Era como uma voz fantasmagórica e sedutora na minha cabeça, uma voz num misto de Natalie Portman e Scarlett Johansson sussurrando na minha cabeça: “Vem cá, gostosão, me escreve.”

O mais puro canto de sereia. Argumentando dia e noite como ele, o conto, seria genial. Já via tudo! Antes de escrever já antevia os aplausos, os prêmios literários das universidades, um dos jurados de gravata azul marinho se aproximando para me apertar a mão, elogiar a efusividade e contemporaneidade da minha prosa, o flerte com a produção pós-moderna, a originalidade e o ritmo avassalador, e depois, ao final, esse sujeito de gravata azul marinho me dava um tapinha nas costas e dizia “você vai longe, menino.”

Dá pra imanginar  os calafrios que esse delírio me causava.

Mas vamos à ideia. Não tinha o enredo nem os personagens. Isso eu ai desenvolver depois. Porque o importante era a estrutura. Era um conto de estrutura metanarrativa espiralada ad infinitum. A história de alguém que conta uma história de alguém que conta uma história de alguém que conta uma história de alguém que conta uma história até o infinito. Não sabia como ia fechar, mas não tinha muita importância, porque, por definição, não tinha mesmo como fechar. A saída era fechar por ressonância, uma cena que servisse de metáfora para a própria estrutura metanarrativa espiralada ad infinitum. Só não sabia qual cena. Mas tudo bem.

Natalie Portman e Scarlett Johansson tagarelando: “Vem cá, gostosão, me escreve.”

Deus do céu!

Mas consegui me livrar do conto. Estava lá, vendo TV, com o conto sentado do meu lado,  pulando de um canal a outro da Sky, até que parei nos Simpsons. Arrepiei os cabelinhos do braço na mesma hora. Vocês não vão acreditar, mas a estrutura daquele episódio, The seemingly Never-Ending Story era a mesma estrutura do conto que eu ia escrever. Idêntica. A maldita da estrutura do conto tava toda naquele episódio. Dá-lhe Jung. Sincronicidade pura(ou talvez, eu tenha visto o episódio  numa outra vez e me esqueci, e fosse essa memória latente a causa da ideia).

Para o bem ou para o mal, daquele momento em diante, o conto sumiu. Limbo.

Confesso que foi bom arremeter os delírios do homem de gravata azul marinho. Fui tomado por certo alívio, como quem tira o peso das costas, uma visita inconveniente vai embora; além, é claro, de ser muito constrangedor ficar nu na frente de um conto.

Mas pelo menos de uma coisa eu vou sentir falta: Natalie Portman e Scarlett Johansson me chamando de gostosão.

Fazer o quê, não é? paciência. 

A vida quase nunca é justa.

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14/11/2010

Naquele bar

Raul estava acomodado numa mesa de frente para mesa de sinuca, espiando uma partida entre o dono do bar, um velho de um olho furado e um outro sujeito de bigode grisalho e chapéu de pêlo, quase um figurante desses filmes de caubóis com botas altas e fivela do tamanho de um pires. Mas Raul não conseguia prestar atenção nas bolas de sinuca.

Raul estava há meia hora naquele bar, à beira da estrada, no meio do caminho entre Três Corações e São Tomé das Letras. O carro tinha quebrado, o celular fora de área, caminhou por quinze minutos e parou naquela bar. Pediu uma cerveja e o telefone emprestado, ligou para um mecânico.

“Vai demorar uma hora pra ajeitar as coisas”, disse o mecânico e Raul não se irritou.

O dono do bar, nomeado João do Bar, perdeu aquele olho na construção de uma cerca. Contava aquela história repetidamente, aos pedaços, três vezes naquele fim de tarde, quase noite; avançava no enredo, para o hospital, voltava para a cerca, praguejava contra o tal do morão amaldiçoado que engoliu seu olho esquerdo; contra a bacia de alumínio cheia de sangue à beira da cama durante duas noites. O outro, da fivela de pires, botas altas e bigode grisalho, dizia que era tudo mentira, que o João do Bar tinha perdido o olho num cochilo. O sujeito de fivela de pires, botas altas, bigode grisalho, disse que o João do Bar dormiu na frente do bar recostado numa cadeira no meio da tarde e um galo faminto roubou o olho com duas bicadas rápidas; na segunda o olho saiu inteiro no bico do galo.

Foi aí que os meninos apareceram.

Sete e cinco anos mais ou menos. Unhas sujas, descalços, sem camisa, cabelos ensebados, olhar desconfiado. O maior vinha com uma taquara na mão, o menor só de cueca. Ficaram parados, olhando na cara de Raul, sem graça, desviando os olhos.

João do Bar, o dono do bar, disse que o morão escorreu na mão na hora de entrar na cova; mas que os dias em casa, antes de ir para o hospital, é que foram tristes. O sujeito de fivela de pires matou mais uma bola e sua botina parecia estar mais pesada, ou pelo menos, mais barulhenta. Disse que era mentira do João do Bar, que o galo saiu com o olho do João do Bar no bico, correndo em roda da casa e que quatro frangos índios vieram enfrentar o galo, que João do Bar partiu atrás do olho, desesperado, sem saber se pegava o galo ou se espantava os frangos.

Raul fingia espiar o jogo tentado despistar o menino maior que continuava encarando. O menor estava na ponta dos pés, braços esticados à beira da mesa de sinuca.

Duas noites em claro, o olho minando sangue, disse João do Bar.

O menino puxou o pequeno e foi até a mesa onde estava Raul.

“Ele lambe meu pé.”

“Oi?”

“Ele lambe meu pé. Quê vê?”

Sentou no chão. Estendeu os braços pra trás, esticou o pé na altura na cabeça do menino menor que, como um filhote de cão, engoliu o dedão miúdo, encardido, unha escura, e começou a chupar como se fosse um picolé.


Quando o mecânico chegou, Raul foi pagar as duas cervejas. Nessa hora pôde ver João do Bar arreganhar os dentes postiços, bem de perto, aquele olho branco e retorcido, morto e ainda sim se movendo. Antes de entrar no carro, topou com o menino maior, correndo em círculos, em volta do menino menor, arrastando a taquara na terra. O menino o encarou mais uma vez. Entrou no carro e acendeu um cigarro.

“Você já foi naquele bar?”

“Não, nunca fui. Por quê?”

“Nada.”

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13/11/2010

a morte de paula d. , Brisa Paim


Desde sete horas a chuva ameaça cair; pelo jeito, quando começar vai atravessar o resto do dia. Não olhei a previsão. Porque previsão, seja a cigana de braços peludos que me cerca na rua ou economista no GloboNews, sempre me dá medo. Tudo bem. Tomei dois ovos quentes e fui tratar do gato. Sem problemas. Fumei um cigarro espiando a massa cinzenta de nuvens acumulando-se detrás da serra, na linha do horizonte. Mas isso foi antes, agora, quando escrevo esse texto, por volta de nove e vinte, a chuva já chegou, troveja e a luz piscou duas vezes, talvez três. Mas não estou com medo, não tenho medo de trovões. Tédio me assusta mais. E não tenho tédio hoje, a pilha de livros está ali, na escrivaninha do lado cama; isso me conforta. Ontem à noite li “a morte de paula d.” da Brisa Paim (Edufal, 2009), e fui logo reler agora, antes de escrever esse texto. O livro venceu o Prêmio LEGO de Literatura 2007 e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2010, na categoria autor estreante.

Que livro.

Acho difícil transmitir a sensação que senti ao percorrer às páginas de “a morte de paula d.”

Desde a capa, a parte gráfica do livro é um elogio a estética. Olhando o livro assim, antes de ler, o primeiro impulso é folhear essas páginas negras do livro. Mas não faça isso, ou você vai perder o acender de luzes.

A pulsão poética, a voz narrativa aparentemente confusa, palavras que tentam representar um além aos pensamentos da personagem; o monólogo frenético, estremecido, repleto de perturbações; essa aparente confusão, esconde um cuidado extremo da autora de “a morte de paula d.”. Cada termo, palavra, incorpora uma função, tem sua necessidade de ser, de estar grafadas ali, daquela forma específica; é esse cuidado na construção que dá o ritmo impecável do livro. Cada efeito é medido. Ao subverter à pontuação e demais elementos de uma narrativa convencional, Brisa Paim propõe um clima, o clima de paula d.; misto de epifania e náusea que vai culminar no abandono dos outros e de si,  num círculo de fuga que tende à um beco sem saída. Não vemos aquele tipo de prosa da expressividade descuidada. E por esses efeitos calculados, a construção do livro se impõe como objeto estético, nos estremece os sentidos. Uma construção, no intuito e apuração, quase cabralina.

O ritmo é o mecanismo usado pela autora para ordenar o caos interno da personagem, ou pelo menos, o esforço em ordená-lo da única forma possível, já que o sentir ultrapassa qualquer representação:

"às vezes eu  me sinto analfabeta eu também"

"todo mundo fala eu queria ao invés de eu quero"

O laço que amarra o leitor nessa história, é esse mesmo ritmo, é através da fruição do ritmo que atingimos a fruição da obra. Somos arrebatados como numa reza ou mantra. Se Brisa Paim parte de formas já usadas, como Beckett e Hilda Hilst, o fluxo de livre consciência, parte com consciência literária apurada. Emula essas vozes para saltar à frente com uma voz própria, autoral e profundamente encantadora.

Vale visitar o site da autora e dar uma espiada: www.palavrapouca.com

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Agora, não chove mais. Os livros estão ali. Folheando “A passagem tensa dos corpos”, descobri uma referência à Luminárias, na pág. 16. Mas é coisa para um outro post.

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12/11/2010

Sol de novembro


Tem dias que o dia amanhece como se não tivesse amanhecido, apesar da luminosidade excessiva, barulhos do vizinho à esquerda debruçado sobre a máquina de lavar; do vizinho à direita com o rádio ligado no último volume. Nesses dias em que o dia amanhece como que disfarçado, como se escondesse alguma coisa, ele se cala, observando a fumaça vazando do copo de café, o gosto de cigarro nos lábios, se cala contemplando o sol varrer as pastagens de um verde desbotado naquela serra, limpar a sombra das copas das árvores; se cala contemplando o sol, centenas de milhares de quilômetros de distância num contínuo processo de autodestruição; se cala diante do sol, como se o sol pudesse oferecer resposta àquela pergunta, que ele, ali, com o copo de café, ouvindo a sinfonia dos vizinhos, diante do dia que amanhece sem amanhecer, é incapaz de formular.

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10/11/2010

O paraíso é bem bacana, André Sant'Anna

O mané aqui, esse que escreve neste blog, poderia dizer que não gostou do “O paraíso é bem bacana”, André Sant'Anna ( Companhia das Letras, 2006)



Mas não.

Eu não sou índio, não. Não sou bebo. Eu prometo.

Mas não.

O mané, esse que escreve neste blog, poderia dizer que, do meio do livro até próximo do fim, a ausência de descrições e o uso de sumários minimalistas, o modo de narrar através depoimentos e diálogos, força o autor a bombardear a narrativa de episódios (como forma de gradação do conflito). E que a essa altura da narrativa, muitos desses episódios tornam-se desnecessários, porque repetem coisas que o mané, leitor, já sabe; força a dilatação dos diálogos, reiterações monótonas de coisas que o leitor, mané, já sabe; como força a dilatação dos fluxos de pensamento do Mané (personagem central) que, muitas vezes, tornam-se repetitivos ou apenas vêm corroborar algo que o leitor, mané, já sabe. Além desse leitor sentir,algumas vezes, que o Mané como personagem, é quase um experimento psicológico de pulsão unívoca e sem muita complexidade.

Mas não.

O mané aqui gostou demais do livro. Gostou dos personagens. Se divertiu com Uéverson. Sentiu raiva do Levi filha-da-puta. Ficou com pena do Mané, Muhammad Mané, vibrou com os gols, sofreu  com o Mané.  O mané aqui, admirou a genelialidade de André Sant'Anna ao recriar um espaço uterino: com uma televisão preto branco, a chuva no telhado do barraco, cheiro de cigarro.

O mané aqui gostou demais da história. Porque, apesar dos "problemas", como todo livro tem problemas, “O paraíso é bem bacana” é um livro muito bem narrado e muito bem amarrado. E, ao contrário do que acontece em muitos textos por aí, a abordagem escatológica, em “O paraíso é bem bacana” não é nem um pouco gratuita. Consegue se firmar sem cair no choramingo e numa suposta e ingênua transgressão. Além de tudo, talvez um dos elementos mais fascinantes do livro, a forma como André Sant'Anna conduz o leitor  na construção de uma linguagem a partir da opressão, é sensacional.

O mané, leitor, poderia ler só esse livro do André Sant'anna, porque é um livraço.

Mas não.



06/11/2010

Barrabás, o piadista.

O legal hoje é ser engraçado.

E todo mundo quer ser legal, logo, todo mundo precisa ser engraçado.

Os perfis de twitter mais “influentes” são de piadistas. Os programas de televisão mais assistidos? programas de humor. Os blogues mais acessados? blogues de humor. Sites de humor. Vídeos no youtube? Sempre os mais engraçados. E-mails? Top dez imagens engraçadas, flagrantes super engraçados,  melhores frases de sogra, piadas de são paulinos, corintianos, treinadores e jogadores. Filmes? Comédias românticas, pastiches, mashups, sucesso garantido. O sujeito vai lá e escreve no bio/quem eu sou: “uma pessoa divertida”. Tumblr? Piadas. Paródias. Montagens.

Propagandas? Pessoas (ou quase pessoas), sorrindo. Sempre. Fileiras e fileiras de dentes.

Anúncios? Slogan? Aquela sacada super pegajosa e divertida. Venha se divertir você também.

O legal hoje é ser engraçado.

E todo mundo quer ser legal, logo, todo mundo precisa ser engraçado.

Entre as muitas teorias sobre o que é o engraçado, existem três que são bem esclarecedoras:

teoria da incongruência: sugere que o humor cresce quando lógica e familiaridade são substituídas por elementos que normalmente não andam juntos. O pesquisador Thomas Veatch diz que uma piada se torna engraçada quando esperamos uma coisa e acontece outra.”

Se você bate na porta do quarto do seu irmão, e atende um elefante azul, se você não desmaiar, você ri. Porque é uma coisa sem lógica. Quarto do seu irmão e elefante azul são dois elementos que não têm qualquer conexão.

teoria do alívio: de acordo com a Dra. Lisa Rosenberg, o humor, especialmente o humor negro, pode ajudar os trabalhadores a lidar com situações estressantes. Ela diz: 'a ação de produzir humor, de contar uma piada, nos dá uma pausa mental e aumenta nossa objetividade diante da tensão opressiva'.”

Tenho muitos, mas muitos amigos e conhecidos que dizem: “A gente rala, ganha pouco, mas pelo menos se diverte”. Ou seja, manuais de administração e gestão de RH, manter um ambiente agradável, motivação, dinâmicas com papelinhos coloridos e data-show: aprenda em vinte minutos a pegar três ônibus lotados na ida e na volta, aguentar um chefe mala e ganhar um salário mínimo por mês - pausa mental: sorrindo.

Teoria superioridade: rimos de piadas que focam os erros, a estupidez ou o infortúnio de alguém. Nós nos sentimos superiores a esta pessoa, experimentamos um certo desligamento da situação e assim temos a capacidade de rir dela.”

Bulir com os mais fracos, nada mais é que impor ao outro, à força, o status de piada. Humilhar o outro, materializar a piada no outro, seja por violência física, psicológica, ofensas, é uma maneira de rebaixar o outro a um status inferior para arremeter carências do nosso ego. As causas, claro, são muitas. Carência de ego vai desde incapacidade intelectual (do sujeito que sabe que é burro, e tem por única expressão a agressão) até pinto pequeno, vaidade em suas múltiplas formas, baixa estima em relação à posição social, baixa estima em relação à família, ao corpo,  profissão, ocupação, status, frustações acumuladas e suprimidas, enfim, n coisas.

Porque, aliás, "vergonha alheia", é bulir mentalmente. Ou não?



Desde sempre tomamos por engraçado aquilo que julgamos como inferior. As crianças, por exemplo, pobres crianças, encarnam os dois lados da moeda. Por um lado, são tratadas como pequenos adultos, adultos inferiores: “olha, que engraçadinho”, “coitadinho do meu bebezinho”; por outro, educadas para serem nossos palhacinhos: “vai benzinho, faz a dancinha pra mamãe ver”, “fala o palavrão pro titio ver”.

Não sei como as crianças sobrevivem.

Tudo bem. O legal hoje é ser engraçado.

E todo mundo quer ser legal, logo, todo mundo precisa ser engraçado.

Mas às vezes isso incomoda. Quando acontece o milagre de encontrar um sujeito que encarne à carapuça de ranzinza com honestidade, a vontade que eu tenho é de soltar uns foguetes,  até rojões, lascar um beijo na testa do sujeito, é quase um êxtase: parabéns, dá aqui um abraço, campeão!

Nem vou tocar em assunto de eleição. Já deu. Já é.


Não sei se isso é coisa de agora, ou se sempre existiu; mas eu, claro, não existo desde sempre; só sei do agora, e agora me parece que o legal é ser divertido, cínico, ironizar. Complicado. Além de ser obrigado, forçado a estar  sempre feliz  e, principalmente, mostrar-se sempre feliz; você é obrigado a ser engraçadinho, porque ser engraçadinho é ser legal e feliz.

"Vai benzinho, faz a dancinha pra mamãe"

Já dizia o poeta, na elegância do grande clichê que: “rir de tudo é desespero”.

Sei lá se é sinal de desespero; mas que tanta gente rindo, em toda parte - com quê frequência? todo o tempo! é desesperador às vezes, isso é. Tem horas que eu fico elaborando umas hipóteses fictícias para essa coisa. Uma delas, é que os resquícios da maconhada da vovozada-hippie-peladões-oba-oba-vamos-que-vamos contaminou a atmosfera, às nascentes, plantações de arroz e feijão;  por causa da ingestão sistemática de THC, estamos sempre chapados; e como essa ingestão é contínua e sistemática, não nos damos conta que estamos chapados.

Pode ser.

Não sei. Talvez não seja coisa de agora. Sei lá, pode ser que Barrabás fosse o bandidão mais divertido da Galiléia.

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Pós-escrito, 16 de Fevereiro de 2011: curioso, hoje, volto a esse post, porque acabei topando com um texto publicado na Folha, por Nina Lemos, em dezembro de 2010, pouca mais de um mês depois que escrevi isso aí: 30/12/2010, "sucesso de quem consegue ser alegre o tempo inteiro"

fonte das citações: Como funciona o riso, por Marshall Brain - traduzido por HowStuffWorks Brasil

04/11/2010

Bartleby e companhia, Enrique Vila-Matas




Profundamente abalado pela leitura dessas notas de rodapé de um texto invisível: Bartleby e companhia, Vila-Matas (Cosac Naify, 2004)

Tudo bem, é um daqueles livros sobre escritores e para escritores, ou para leitores com aquela paciência para metaliteratura. Se você não tiver paciência para essas conversas de sala de estar da literatura, não recomendo (apesar que a habilidade narrativa de Vila-Matas em passar do erudito ao cômico, do desespero à piada, e vice-versa, garante a leveza da leitura). Li de uma sentada.

O livro é narrado em primeira pessoa por um sujeito corcunda, feio, que publicou um romancezinho sobre a impossibilidade do amor e ficou vinte e cinco anos sem conseguir escrever. Os capítulos são organizados como um diário, cheio de citações, é quase um tumblr desses mais cults.

Bartleby e companhia é um livro sobre não escrever um livro. Sobre a pulsão negativa da escrita, a síndrome de Bartleby(preferiria não fazer); a caça desse solitário sujeito por bartlebys; um minucioso e divertido inventário sobre escritores reais e inventados que abandonaram à escrita ou que nunca escreveram; sobre escritores que passaram  pela vida assombrados pelo grande livro que nunca foram capazes de escrever, escritores que rejeitaram a própria obra, que isolaram-se do mundo, escritores obcecados pelo silêncio e pela incapacidade das palavras em transmitir qualquer coisa.

Contudo, uma investigação sobre o não escrever é, fundamentalmente, uma investigação sobre o escrever, sobre o porquê da literatura, sobre por que escrever: “o normal é ler”, e escrever é meio que o desvio. Nada melhor que organizar o livro nas citações; nada melhor para evitar (sem evitar) a escrita do que a citação e o comentário. A citação é aquilo que permite estar próximo da escrita e ainda sim negá-la, afinal:  

citar é quase escrever, sem escrever 
comentar é escrever, quase sem escrever.

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(sobre a arte de citar, um bom texto do escritor Pedro Maciel na Germina: aqui )

03/11/2010

The Walking Dead

Acompanhar seriados é sempre frustante.

Lost, por exemplo; a frustração foi tanta que nem vi a última temporada. Desânimo total.

Carnivàle, uma série com um Q de realismo fantástico e pequenos absurdos; com personagens que transcendem a trama principal (luta arquetípica de um suposto bem com um suposto mal; mas definida por uma linha tênue; em alguns momentos da série assume tons deliciosamente confusos), foi simplesmente abortada. Uma pena.

Porque as personagens em Carnivàle são fortes tanto no nível da estética estranha (tristes figuras circenses vagando pelo interior dos EUA dos anos 30 em plena Grande Depressão), como na complexidade, nos conflitos humanos, que são bem viscerais: triângulo amoroso, inveja, ciúme, solidariedade, desapego, esperança, ganância, fé, sede de poder, manipulação, submissão, precariedade da condição humana. E o mais importante, ocorre aquele necessário movimento de transformação interna. Começam A e terminam B. Mesmo os secundários, são cativantes. Talvez o Irmão Justin seja o mais plano, porque a partir da "jornada espiritual" ele meio que estanca, as dúvidas e vacilações desaparecem. Talvez, claro, porque a partir daquele momento o Irmão Justin assume um tom mais fabular, meio épico. Enfim, sou um entusiasta de Carnivàle. Acontece que tudo vinha  mais ou menos agradável, então, baixaram um decreto e aceleraram o fim da séria na segunda temporada;  a despeito da resolução da trama, que foi acelerada, as personagens se planificaram e pronto: raiva eterna.

Via também episódios esporádicos de Six Feet Under, depois desanimei. Lembro vagamente de alguma coisa.*

Fora isso, vejo um ou outro episódio de Nip/Tuck. E só por acaso, aliás; se me perguntar qual é o dia que passa, horário, em que temporada está? não faço a mínima idéia. House, Dexter e os infinitos CSI's? Nenhum episódio conseguiu prender minha atenção por mais de cinco minutos.

E nesse contexto de total desânimo com séries, me dispus a assistir The walking dead

Por que?

Não, não li a HQ que inspira o seriado. Não sou fã incondicional da cultura zumbi, embora saudosista de  alguns poucos filmes como The night of the living dead (remake de 1990), Re-animator, The serpent and the rainbow, Resident evil ( o jogo, já que os filmes são lamentáveis). Por que, então?

Resolvi arriscar; apesar de saber que a decepção é inevitável.

Primeiro episódio:

Rick é ferido num tiroteio e vai parar num hospital, fica em coma; quando acorda, a cidade está destruída e cheia de zumbis. Rick volta pra casa e não encontra sua esposa; encontra outros dois sobreviventes, pai e filho e que, de forma meio confusa, explicam o que aconteceu. Além disso, contam que há uma suposta colônia de resistência em Atlanta; comida, abrigo, armas, etc. Rick parte para Atlanta em busca da esposa (ele acredita que ela está viva, porque encontra pistas da partida de Lori na casa, as fotos sumiram). Para além do clima apocalíptico, das ruas desertas, tiros na cabeça dos zumbis, ficou evidente que, num primeiro momento, a narrativa vai se guiar nessa busca pela esposa e o filho, meio que uma Odisséia só que sem uma Ítaca geograficamente definida; pois, logo de cara, Rick descobre que Atlanta não é um lugar seguro.

Bom, enquanto o policial Rick permanecia desacordado no hospital, seu parceiro, o policial Shane, acabou tomando conta de Lori, (a esposa) e Carl (o filho de Rick). Se por um lado isso garantiu à sobrevivência da esposa, por outro, criou mais um conflito: Shane, o amigo de Rick, tem cuidado muito bem de Lori. E claro, suponho que Rick irá encontrá-los alguns episódios à frente.

O episódio termina com uma mensagem de rádio, deixando claro o encontro de Rick com outros sobreviventes; é o gancho do segundo episódio.

Nos episódios futuros, suponho que a trama deve girar no eixo de fugir para algum lugar seguro e, muito possivelmente, aparecer uma cura, vacina, algo assim.

Fora alguns pequenos problemas de verossimilhança[sic] nos zumbis (abrir portas, parece que no segundo vão jogar pedras), o primeiro episódio de The walking dead é bom.

Entretanto, temo que a série se perca em muitos episódios soltos, enrolação vazia, sem relação com a trama principal ou conflitos das personagens. Porque, no fim das contas, qualquer série, pra mim, é decepção  garantida. Principalmente essas que eu gosto no começo, assim como gostei de The walking dead.

Mas vou ver. Por que? bom, é uma das raras chances de ver zumbis na televisão fora do horário eleitoral.

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*Oz também era algo legal, mas so vi episódios esporádicos. Quanto à The big bang theory e Monk é como ver os Trapalhões ou Chaves.