27/12/2010

Aula de descrição: Carver, Hemingway, Maupassant.

Aprenda a abrir um conto com um parágrafo descritivo:


“Bateu um vento naquela tarde, trazendo rajadas de chuva e fazendo os patos voarem para longe do lago, em explosões pretas, em busca de abrigos sossegados no meio da mata. Ele estava nos fundos da casa, rachando lenha e viu os patos passando sobre a rodovia e descendo no pântano por trás das árvores. Ficou olhando, grupos de meia dúzia, na maioria em pares, um bando depois do outro. Para além do lago, já estava escuro e enevoado e ele não conseguia enxergar a outra margem, onde ficava a serraria. Passou a trabalhar mais depressa, batendo a lâmina de ferro com mais força nos pedaços secos e grandes da madeira, rachando tão fundo que os pedaços podres se estraçalhavam. Na corda de secar roupa da sua mulher, estendida entre dois pinheiros, lençóis e cobertores estralavam por causa do vento com um som de tiros. Ele fez duas viagens e levou toda a lenha para a varanda antes de a chuva começar a cair.” 

Os patos, Raymond Carver. Você poderia ficar quieta, por favor? 68 contos de Raymond Carver, pág. 206. Tradução: Rubens Figueiredo, Companhia das Letras, 2010.



"Nos velhos tempos, Hortons Bay fora uma cidade madeireira. Ninguém que lá vivesse estivera livre do barulho das grandes serras da serraria perto do lago. Depois, certo ano, não havia mais troncos para fazer madeira. As barcaças entraram na enseada e foram carregadas com a madeira que ficara empilhada no cais. Todas as pilhas de madeira foram levadas. O grande edifício teve toda a maquinaria desmontável removida e içada para a barcaça pelos homens que trabalhavam na serraria. A barcaça saiu da enseada em direção ao lago aberto, carregando as duas grandes serras, a carreta móvel que arremessava os troncos em direção à serra circular e todos os rolos, rodas, correias e ferros que foram empilhados num porão cheio de madeira. Cobriu-se a boca do porão com lona bem amarrada, encheram-se as velas, e a escuna moveu-se para o lago aberto, carregando tudo o que fizera da serraria uma serraria e de Hortons Bay uma cidade. ”

Fim de algo, Ernest Hemingway. Contos de Hemingway, pág. 20. Tradução: A. Veiga Fialho. Civilização Brasileira, 1969.



“Durante vários dias seguidos escombros de um exército em retirada haviam atravessado a cidade. Não era uma tropa, mas hordas em debandada. Os homens tinham a barba comprida e suja, uniformes em farrapos, e avançavam com um ar combalido, sem bandeira, sem regimento. Todos pareciam arrasados, esfalfados, incapazes de um pensamento ou de uma iniciativa, caminhando apenas por hábito, e caindo de cansaço tão logo se detinham. Viam-se principalmente reservistas, gente pacífica, rendeiros tranquilos, curvados sob o peso do fuzil; pequenos moblots* alertas, fáceis de assustar e prontos ao entusiasmo, tão dispostos ao ataque quanto à fuga; depois, no meio deles, alguns culotes vermelhos, destroços de uma divisão esfacelada numa grande batalha; artilheiros sombrios alinhados com infantes dos mais variados; e, por vezes, o capacete brilhante de um dragão de passo arrastado que a muito custo seguia a marcha mais lépida dos soldados de linha."

*Apelido dado aos soldados da Garde National Mobile, formação militar francesa organizada de 1868 a 1871, em razão da Guerra Franco-prussiana, constituída principalmente por jovens que não tinham feito o serviço militar (N. E. F.)

Bola de sebo, Guy de Maupassant. 125 contos de Guy de Maupassant, pág. 34. Tradução: Amilcar Bettega. Companhia das Letras, 2009.


21/12/2010

Conservação dos dias


Percebo os anos avançando encavalados, atropelando-se; paralelos.

2008 permaneceu ao lado de 2009 até o fim. Depois, infiltrou-se em 2010, de janeiro até dezembro. Mas tão logo constatou seu anacronismo, esmoreceu, desistiu de prosseguir.

2009 morreu em setembro de 2009, antecipando à entrada de 2010

prematuro, 2010 não resistiu, morreu antes do tempo, antes que 2011 chegasse;
abandonando os dias:

soltos, cada um por si, no vácuo, desligados dos anos; obstruindo a contagem.

soltos, os dias beiravam à loucura, indiferenciados;
sábado disfarçado de segunda chuvosa,
domingo caindo na quarta, terça se fazendo passar por quinta.

dias sem rosto beirando à beira da suposta eternidade;

Tudo bem.

Pra recuperar a ordem basta usar o calendário. Mas calendário é uma coisa muito datada, pragmática. Cada dia no calendário vale um dia só. E dentro de uma semana um dia é apenas a sétima parte. Num mês, é uma pequena fatia entre outras trinta equiparáveis. Em um ano, então, um pequeno suspiro no meio de outros trezentos e ínfimos suspiros. Cada dia nasce anunciando a sua precariedade. E marcar o tempo é a melhor forma de acelerar os ponteiros e desmerecer as vinte e quatro horas. Feito o prisioneiro, pragmático, riscando pauzinhos na parede da cela a cada noite de sono injustiçado.

Pergunto se as formigas adotaram a prática do calendário em seus misteriosos túneis subterrâneos. Duvido. Já no início das eras, na primeira geração, as formigas perceberam a ineficiência de contar os dias e  abandonaram esse hábito obsoleto.

Calendários aceleram o tempo.

Com o tempo passando mais rápido, o trabalho não rende. Não dá pra abastecer os estoques da colônia; despir a paineira de suas folhas, depenar as pastagens de capim gordura ou braquiária. E seria inverossímil conciliar a existência do calendário e a habilidade das formigas em aparecer do nada, atravessar espaços como se os espaços não existissem. Não poderiam surgir misteriosamente no meio da cozinha e surrupiar dois torrões de açúcar, seis grãos de arroz detrás do fogão; farelo de bolacha sobre a toalha de mesa. A única forma de galgar espaços de forma tão rápida, é suprimindo o tempo. Por isso as formigas abandonaram os calendários.

Eu, ao contrário, continuo contando.

Riscando pauzinhos na folhinha, marcando os compromissos na agenda, colocando o relógio pra despertar cinco minutos mais cedo. Tentando dar eficiência a vida, aproveitar bem o tempo, riscar mais um pauzinho na folhinha; feito o prisioneiro, projetando uma saída futura, algum tipo de redenção inexistente; ou a azeitona em conserva, esperando virar petisco, cair num prato, morrer nos lábios sorridentes; e vencer a data de validade, evitar a lixeira, pra não terminar devorado, até o caroço, na fome paciente da legião de formigas.

19/12/2010

Paisagem com dromedário, Carola Saavedra


Prezado leitor: Paisagem com Dromedário, de Carola Saavedra (Companhia das Letras, 2010) é um romance existencial de ótima qualidade. Explico o existencial: é existencial não apenas pelo maneirismo da personagem Érika por aforismo e/ou reflexões obsessivas sobre “o sentido” maior da existência e/ou a falta de; é existencial não apenas por citar indiretamente reflexões da estética heideggeriana e/ou função e sentido da arte; é existencial não apenas por flertar (ainda que de forma tímida e distante), com A convidada de Simone de Beauvoir na questão do triângulo amoroso; é existencial não apenas por “dizer alguma”, construir ou desconstruir uma moral, o sentindo das relações humanas, o jogo do interno e externo e da atuação (da personagem que finge ser alguma coisa aos outros e carrega uma contradição explosiva dentro si, perdida na apropriação por encenação e na expectativa daquilo que outros esperam que ela seja); é existencial porque imprime uma marca em que lê; é existencial porque o leitor não sai impune da leitura. 


Tenho que confessar que, antes de ler, esperava por uma leitura pesada(não pelo tema, mas pela estrutura). Quer dizer, um livro que é estruturado por um conjunto de 22 gravações, uma única personagem falando o tempo todo diretamente ao interlocutor (tipo: A queda, Camus), não chega a ser cansativo mas exige atenção redobrada. Mas no caso de Paisagem com dromedário, não foi caso disso. Carola Saavedra dosa perfeitamente os momentos de reflexão com os episódios (ou causos) que fazem o enredo avançar. Érika, a narradora, é uma ótima contadora de causos. O tom intimista vai nos envolvendo de uma forma muito prazerosa. Érika é daquele tipo de "pessoa" que se estiver do nosso lado numa longa viagem de ônibus, faz a viagem desaparecer; anos depois, não lembramos nem qual ônibus pegamos, de que cidade a qual cidade, mas nos lembramos da história e do jeito daquela pessoa falar. 

Além do mais, o livro consegue tratar a questão do triângulo amoroso sem cair no lugar-comum; ora, isso não é fácil (ref: uma das mais belas cenas de ménage à trois que eu já li). Todo mundo já viu As horas, não é? Você deve estar lembrado da cena em que o marido de Virginia Woolf pergunta pra ela, algo como: “por que sempre há mortes nos seus livros? Por que sempre alguém tem que morrer?” Virginia responde: “É um contraste. Alguém morre para que outros possam viver.” A morte, a exclusão, é uma maneira de criar um fundo para vida. Em Paisagem com dromedário, Carola Saavedra utiliza uma solução semelhante no triângulo amoroso. Nesse tipo de relação, sempre alguém ficará excluído, é necessário que seja excluído; e essa exclusão é o contraste para que os outros dois se mantenham. A exclusão que traz equilíbrio. Toda negação é uma afirmação. 

Não li os livros anteriores da Carola Saavedra, mas, mesmo antes de lê-los (coisa que pretendo fazer o mais rápido possível), já posso afirmar que estou diante uma grande escritora. É tão boa escritora que me fez suportar e relevar as referências heideggerianas. E isso não é pouca coisa.

E, aliás, nenhum silêncio é igual a outro. 


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[ps: impressionante como há boas escritoras escrevendo e publicando hoje, não? quer dizer, não que exista tal coisa como "literatura feminina" e toda a discussão que isso envolve, enfim; mas, das que li até agora, destaco a Brisa Paim e a Carol Bensimon. Claro, há muito mais autoras, difícil é acompanhar tudo que é lançando e ler os clássicos ainda não lidos (tipo: os sete volumes de Guerra e Paz), e reler aqueles clássicos  essenciais como Crime e Castigo ou Angústia. Mas, li os dois livros da Bensimon, lá pelo começo do ano, e gostei muito. Não comentei aqui na época da leitura, porque, sei lá, não tinha intenção de compartilhar minhas impressões de leituras por aqui. Mas recomendo muito Sinuca embaixo d'águaBensimon trabalha com a narrativa fragmentada em múltiplos focalizadores, consegue construir uma prosa sofisticada e de senso estético depurado. Sem contar, que o Polaco, um dos personagens do livro, é tão pegajoso que dá saudade quando terminamos de ler. Sério, deu até vontade de escrever pra Bensimon e pedir que ela escrevesse uma novela só com o Polaco. ]

17/12/2010

Variações de um Natal passado.


Embora houvesse o homem de bucho estufado, empresário; oriundo de um reino distante chamado São Paulo, vez por sempre, estufando com imagens a tela da televisão tingida de verde (o reino São Paulo, não o homem), exibindo umas casas diferentes, extensas, na vertical, pilares gordos sem nada pra sustentar, cheias de janelas; a profusão de senhoras e madames de óculos escuros se acotovelando com trajes de missa à luz da rotina ordinária; embora houvesse presentes iguais aos presentes da televisão tingida de verde (presentes jamais encontrados em mercados e bazares da pequena cidade, àquela época); embora houvesse até mesmo o saco, a camionete (a mesma função de trenó), de pintura e pneus majestosos frente aos parcos carros que transitavam por aquela cidade de ruas irregulares, estreitas e sem trânsito; e o homem, de bucho estufado e equilibrado, e risonho, jogando balas aos moleques que vinham atrás, correndo de shorts Adidas vermelhos com três listras brancas, bermudinhas de moletom cinza ou azul e sem camisa, uma camisa do Atlético escrito coca-cola, às vezes descalços, às vezes calçados com chilenas havainas azuis ou samoas pretas, brotando das casas aos montes, formando um grupo sedento por balas lançadas ao ar, presas nos vãos ásperos dos bloquetes, machucando a falange dos dedos nas quinas dos bloquetes e no esforço de arrancar, pequenos arranhões pra puxar a bala, encher os bolsos, as mãos e a boca:

e o sorriso na boca daquelas crianças fosse da mesma tonalidade sentimental dos sorrisos na televisão tingida de verde, porque, afinal, havia o homem de bucho estufado, vindo de algum lugar misterioso e importante para oferecer presentes especiais e jogar bala chita; embora as crianças voltassem correndo para casa com os beiços lambuzados de bombons garoto à medida que a mãe, cuidadosa, retirava o presente do embrulho como se o embrulho fosse mais importante que a coisa embrulhada; embora houvesse essas coisas todas, não havia neve. E foi a ausência da neve a grande epifania intuitiva, uma semente de lucidez, ou podridão, plantada como um explosivo sorrateiro, enraizada pra sempre, ainda que os tornozelos e joelhos do menino fossem miúdos, e houvesse os restos de chocolate nos beiços, embrulhos estocados como se fossem presentes; a intuição, insuperável, fez com que ele entendesse, não naquele momento, mas em um confuso e indefinido momento futuro, dez, quinze, vinte anos à frente, (a intuição explodindo, crescendo, avançando, aos poucos, como avança a trepadeira no muro, sempre presente; discreta, evitando impor sua ausência), que o mundo prometia muito e cumpria pouco.

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Tinha algo de errado com aquele microfone, ineficiência do operador de som, a má qualidade do equipamento; ou as duas coisas. O homem de bucho estufado (agora, sem a falsa barriga), disse que tinha saído daquela cidade miúda numa pobreza extrema, apenas com um par de botinas, uma mão na frente outra atrás, mas calçado, graças à Deus; e descambado pra São Paulo.

O menino, agora já de barba na cara e gosto de cachaça na boca, ouvia aquelas coisas e se perguntava, sem formular qualquer frase mental objetiva, um raciocínio suspenso, automático, o giro invisível da engrenagem no interior mais obscuro do motor de um carro, rememorando aquele tempo de joelhos e tornozelos miúdos, embrulhos guardados como se fossem presentes, o menino, agora de barba na cara e gosto de cachaça na língua, pelo viés dos sedimentos instalados e reavivados pelo o homem no palanque, o menino intuía, espreitava à mentalidade, e paciência, planejamento, esperança medonha habitando à cabeça daquele homem de bucho estufado (agora, sem a falsa barriga no alto do palanque) para elaborar a engenhosa compra de votos a priori.



11/12/2010

Suplemento Literário de Minas Gerais, edição especial Libério Neves


"Drummond, João Cabral e Bandeira. Essa tríade. Uma vez me perguntaram: quais são os dois melhores poetas do modernismo brasileiro? E eu então respondi: dois eu não respondo não. Se você me perguntar três, eu respondo. Dois não. Porque senão eu farei uma injustiça de acordo com a minha própria admiração. Bandeira me marcou pelo lado da simplicidade, do domínio de temas aparentemente simples e que não daria para fazer poesia. O Drummond, que era mais pomposo na escolha dos temas. O Pierre Santos é que tem uma frase boa. Um dia ele me disse: 'o Drummond pega uma banana e vai comendo a banana e o João Cabral vem atrás. A hora que o Drummond joga a casca da banana fora, o Cabral cata e faz um poema sobre a casca da banana'.

Libério Neves, entrevista a João Pombo Barile, edição especial de Novembro do Suplemento Literário de Minas Gerais.


Recomendo muito, principalmente aos interessados em poesia, não apenas na forma ou estética, mas nas questões de consumo e absorção da produção poética pelo circuito literário.

Gorillaz - "Crystalised" (The xx Cover)

Então é natal.




E essa aqui também.

08/12/2010

The Walking Dead: TS-19

Abriu com um flashback inesperado, Shane no hospital, o exército invadindo, tiros, confusão, gás lacrimogêneo, etc etc... Depois, do meio pro fim, o playback de uma tomografia computadoriza 3D, exibindo o processo de atuação da infecção no cérebro humano (detalhe para minutos de sabedoria neurocientíficos: somos apenas um conjunto de impulsos elétricos, sinápses, etc etc.. ) No mais, vinho e duas personagens mortas.

Assim eu resumiria o sexto e último episódio da primeira temporada de The Walking Dead, TS-19, que a Fox exibiu ontem. Confesso que esperava mais (ou não).

É engraçado, a história é aparentemente boa, consegue criar uma atmosfera, fotografia agradável, bons efeitos, consegue prender a atenção lançando pequenos conflitos menores diante da meta maior das personagens: sobreviver num mundo pós-apocalipse, desolado, hostil; mas só prender a atenção no momento que se assiste, não adianta lá muita coisa (para um seriado com pretensões épicas, pelo menos); basta resolver o entrave, seja buscar armas, matar uns zumbis aqui, acolá, ir de x à y e a coisa murcha, se esvai como se nunca tivesse existido; quando o problema se resolve, o espectador (no caso eu) desliga a televisão e pronto, é como se tivesse visto um comercial de celular ou coisa do tipo. Embora divertido, a emoção (seja tensão, ação, drama) é rasa, dez segundos depois mal se lembra do que aconteceu.

Não sei para quem é fã de zumbis e tem esses fetiches. Porém, mesmo eu que não sou lá um grande fã, senti falta de zumbis nos dois últimos episódios. Senti falta de algumas tomadas com respawn de mortos-vivos. 

Dale

Mas, apesar dos pesares, posso dizer que valeu a pena até agora.

E o jeito é nutrir esperanças de que na próxima temporada (outubro de 2011), as personagens fiquem um pouquinho mais simpáticas. Porque  o esteio da casa, a salvação da lavoura em The Walking Dead, são Shane (a ponta mais fraca do triângulo amoroso) e o velho Dale (à esquerda), personagem secundário pouco explorado que, dia desses, citou Faulkner ao redor da fogueira. 




Eu não li a HQ, então não sei pra onde a trama vai daqui pra frente. O mais provável (suponho), é que o grupo se depare com outro núcleo de sobreviventes, entre em conflito com esse núcleo. Provável, também, (ou mais que evidente) que o triângulo amoroso Rick-Lori-Shane fique mais tenso (como acorreu na cena em que Shane bêbado andou perdendo as estribeiras, agarrando Lori). No terceiro episódio (ou seria o quarto?), numa patrulha, Shane andou apontando a arma para Rick (pelas costas). Se isso não for uma cena gratuita (acho que não é), a situação vai ficar cada vez mais insuportável. Mesmo porque, antes de Rick chegar, Shane era o líder do grupo, quem dava todas as ordens, o mais respeitado, além de suprir a carência de Lori. O retorno de Rick tirou Shane pra escanteio em todos sentidos, e ninguém gosta de ser jogado pra escanteio desde os tempos que Caim matou Abel. 

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02/12/2010

Domingo encarnado

O nome do sujeito é Domingo. Nunca dei muita atenção para o nome. Muito menos para as roupas desgrenhadas, barba que poeira só, os pés cascudos. Domingo é motorista, zanza pela cidade com um volante nas mãos como se guiasse um veículo imaginário.

O volante, segundo consta, era de uma rural velha, estacionada no almoxarifado da prefeitura há anos. Ao investigar as origens desse hábito e do volante, numa noite no Bar do Tatá, soube que o homem tinha conseguido de um dos mecânicos; e como não houve protesto por perda de patrimônio público, Domingo guiava sua quimera com tranquilidade.

Sobre a origem do hábito, no entanto, pouco se sabia. Havia quem dissesse que tinha nascido assim, outros que foi pé na bunda, uma mulher que ninguém sabia o nome. Eram tantas hipóteses isoladamente verdadeiras que, em conjunto, nada daquilo fazia sentido.

Sábado passado, saí logo pela manhã movido por um convite inconveniente de pescaria do acolhedor Josué, então, topei de frente com o motorista daquele veículo abstrato. Quase me atropela. Trocou marchas, tascou a mão na buzina sem piedade, ameaçou fazer uma baliza ao redor da praça, entre o uno do Padre e gol de um taxista, talvez, suponho, para tirar satisfação com esse pedestre que já batia queixo e tremia na base; calcule meu desespero, já sentia as volantadas na cabeça, nas costas, uma desgraça; mas, para meu alívio, desistiu da baliza. Deve ter achado a vaga pequena; acelerou avenida afora, debreou, engatou à quarta marcha. Sumiu. Tamanha habilidade me deixou embasbacado, eu que nunca aprendi a guiar essas coisas, nunca memorizei a função dos pedais. A destreza do sujeito me distraiu tanto, que me fez esquecer o grande absurdo, na verdade, que era dar de cara com o Domingo, em pessoa, no sábado.

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Publicado na revista Diversos Afins, 30/11/2010