“11) Porque a pintura proporciona uma sincronia de impressões, um abarcamento quase simultâneo, onde tudo é dado ao mesmo tempo e sob um mesmo olhar. Uma paisagem, um rosto, um corpo, cores, sombras, vazios, todos esses elementos coabitantes de uma mesma tela agem em conjunto sobre o observador como um catalisador de uma série de emoções que, até então, poderiam estar adormecidas nele. A escrita, por sua natureza discursiva, não conta com a força de impacto que pode ter a simultaneidade da percepção; a leitura é linear e sua ordem é imposta de forma autoritária pelo escritor. Acho que a carga expressiva da imagem, que suplanta a palavra, acaba fascinando os escritores. Não é à-toa a atração, e em alguns casos a amizade intelectual, entre escritores e pintores como Baudelaire e Delacroix, Zola e Manet, Borges e Xul Solar, o próprio Cortázar e seu quase fascínio por De Chirico e Magritte e Taulé e Julio Silva e tantos outros. Creio, enfim, que um verdadeiro quadro chama, quase obriga o observador a um outro ponto de vista, a uma outra maneira de se posicionar em relação ao que se apresenta à sua frente, e que é diferente daquela que ele normalmente utiliza para ver tudo o que o cerca. É evidente que isso pode ser ampliado: a verdadeira arte desvirtua, desloca a ordem. As instalações que se multiplicam aos milhares nas exposições de arte contemporânea jogam basicamente com isso. Dispor objetos domésticos numa praia deserta não vai muito além disso. Se transpusermos para a ótica da normalidade cotidiana, a leitura que podemos fazer é que se trata de uma loucura. É por isso que o fato de o personagem do conto “enlouquecer” é menos um testemunho sobre seu estado mental do que uma subversão à ordem, uma queda fora do espaço da lógica aceita como normal. Talvez a pintura entre neste conto como uma pequena crítica à própria literatura. A ruptura, a transformação de uma maneira viciada de ver as coisas é muito mais fácil através da pintura do que através da literatura. Uma mulher sentada segurando um leque na mão direita, com o pescoço um pouco inclinado e o braço esquerdo displicetemente pendido sobre as pernas nunca vai ser somente isso depois de Modigliani.”
do conto A/c editor cultura segue resp. cf. solic. Fax, Os lados do círculo, Amilcar Bettega (Companhia das letras, 2004), páginas 109, 110.
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