Desde que nossos primos símios desceram daquelas árvores, perderam os pêlos e fundaram esse buraco sem fundo que é a consciência, instalou-se a encrenca.
E cada um joga a isca da ilusão onde lhe convém. Afinal, sem uma boa dose de ilusão, ninguém suporta viver. Há quem persiga à riqueza, há quem corra atrás de glória, há quem queira curtir a vida em sua totalidade, quem só queira ser feliz, ter saúde, andar tranquilamente na favela onde eu nasci; ou atingir o Nirvana, ou conhecer o grande amor; ou pelo menos casar com alguém legal, dormir de conchinha e construir família. Há quem deseje morar na França ou tocar jazz em NY, passar no concurso da Petrobrás ou do Banco do Brasil. Há quem deseje fundar o próprio negócio, ou comprar uma casa em Ubatuba, ou criar a grande obra de arte, ou salvar a alma, o sangue de Jesus tem poder, eu vou para o céu, graças à Deus. Há quem junte dinheiro pra comprar um gol bola de segunda-mão e colocar aquele som da hora e passear pela cidade na maior curtição; há quem queira frequentar os lugares mais badalados e chiques, ou ganhar um milhão de reais [em barras de ouro que valem mais que dinheiro, é claro], ou aqueles que apenas desejam a casa própria, emprego fixo, a geladeira cheia. Pode até mudar o objeto, meta, a coisa a ser conquistada, comprada ou vivida; no fim das contas é o mesmo buraco. E cada um tampa o próprio buraco como pode, como melhor lhe convém; porque, aliás, ninguém tem nada com o buraco alheio.
Não dá pra deixar os pêlos crescerem e trepar de volta nas árvores e ignorar o buraco.
O que resta é tapar o buraco. Apegar-se às pequenas ilusões de grandeza, de estar com a razão, de fazer o que é certo, correto, de ser o melhor possível dentro das nossas possibilidades e tocar a vida em frente, ir fundo, no buraco.
Mas a gente não consegue cuidar apenas do próprio buraco. A gente precisa trepar no muro e espiar como é que o outro tá resolvendo o buraco dele. Há uma necessidade de comprovação de que estamos cuidando melhor do nosso buraco do que qualquer outra pessoa. De que o outro, coitado, está cuidando do buraco dele da maneira errada, [porque a nossa maneira é a certa]. E não é pra ajudar, não. É pra dizer que a minha ilusão é melhor que a sua, que minha verdade vale mais que a sua, que eu sou melhor que você e sei cuidar melhor do buraco que você.
Afinal, isso nos faz bem, não é? dá aquela sensação de superioridade, aquele riso silencioso: “eu sou mais legal que você, olha só como meu buraco é bom. Um belo de um buraco!”
Nós precisamos muito disso. É uma necessidade primária. Se não praticamos esse hábito, a nossa ilusão de grandeza não resiste. Precisamos de contraste, de algo com o que comparar, estabelecer proporções, escalas, axiologias; e só podemos fazer isso cutucando o buraco do outro: é inevitável.
A primeira vez que espiamos já sentimos o buraco do outro como pior que o nosso. Ali um defeitinho na borda, um matinho crescendo em volta do buraco, oh, sim, é certamente um buraco mais feio, mais bobo, mais sem graça, inferior, errado, fora de moda.
Claro, afinal eu estou no caminho certo, não é? fazendo o que é melhor pra mim, não é verdade? [e só acredito nisso porque comparo imediatamente a minha vida aos dos outros, coitados, que estão errados, equivocados, perdidos]. Precisamos ajuizar as ilusões do outro pra sustentar a nossa ilusão; pra não duvidar das nossas crenças, metas, objetivos e desejos pessoais, realizados ou planejados. Pra dizer que nosso buraco vai muito bem, sim, senhor, muito obrigado.
Julgar, atestar que são piores, mais fracos que nós; é pra diminuir o fardo no lombo, aliviar esse fardo de ilusões que carregamos; é pra sentir-se vivendo o certo, o bom, o legal; ou, pelo menos, minimamente confiantes pra seguir em frente, atrás de alguma coisa, crentes de que cuidamos direitinho do nosso buraco, sim, senhor, graças à Deus.
Claro, afinal eu estou no caminho certo, não é? fazendo o que é melhor pra mim, não é verdade? [e só acredito nisso porque comparo imediatamente a minha vida aos dos outros, coitados, que estão errados, equivocados, perdidos]. Precisamos ajuizar as ilusões do outro pra sustentar a nossa ilusão; pra não duvidar das nossas crenças, metas, objetivos e desejos pessoais, realizados ou planejados. Pra dizer que nosso buraco vai muito bem, sim, senhor, muito obrigado.
Julgar, atestar que são piores, mais fracos que nós; é pra diminuir o fardo no lombo, aliviar esse fardo de ilusões que carregamos; é pra sentir-se vivendo o certo, o bom, o legal; ou, pelo menos, minimamente confiantes pra seguir em frente, atrás de alguma coisa, crentes de que cuidamos direitinho do nosso buraco, sim, senhor, graças à Deus.
"Ah, eu não julgo"
Não? Então desconfio que você não seja humano e esteja além dessa coisa patética, desse duelo de foices às escuras, que nós chamamos de vida.
Pensar nisso traz um quê de ridículo, quase risível mesmo. Porque, nivelando, todo têm esse buraco a preencher - a segunda parte é que é preencher, de forma diferente, o que acaba podendo ser detalhe. Partimos do mesmo ponto, é o que quero dizer.
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