05/01/2011

Cada um no seu buraco

Desde que nossos primos símios desceram daquelas árvores, perderam os pêlos e fundaram esse buraco sem fundo que é a consciência, instalou-se a encrenca. 

E cada um joga a isca da ilusão onde lhe convém. Afinal, sem uma boa dose de ilusão, ninguém suporta viver. Há quem persiga à riqueza, há quem corra atrás de glória, há quem queira curtir a vida em sua totalidade, quem só queira ser feliz, ter saúde, andar tranquilamente na favela onde eu nasci; ou atingir o Nirvana, ou conhecer o grande amor; ou pelo menos casar com alguém legal, dormir de conchinha e construir família. Há quem deseje morar na França ou tocar jazz em NY, passar no concurso da Petrobrás ou do Banco do Brasil. Há quem deseje fundar o próprio negócio, ou comprar uma casa em Ubatuba, ou criar a grande obra de arte, ou salvar a alma, o sangue de Jesus tem poder, eu vou para o céu, graças à Deus. Há quem junte dinheiro pra comprar um gol bola de segunda-mão e colocar aquele som da hora e passear pela cidade na maior curtição; há quem queira frequentar os lugares mais badalados e chiques, ou ganhar um milhão de reais [em barras de ouro que valem mais que dinheiro, é claro], ou aqueles que apenas desejam a casa própria, emprego fixo, a geladeira cheia. Pode até mudar o objeto, meta, a coisa a ser conquistada, comprada ou vivida; no fim das contas é o mesmo buraco. E cada um tampa o próprio buraco como pode, como melhor lhe convém; porque, aliás, ninguém tem nada com o buraco alheio. 

Não dá pra deixar os pêlos crescerem e trepar de volta nas árvores e ignorar o buraco. 

O que resta é tapar o buraco. Apegar-se às pequenas ilusões de grandeza, de estar com a razão, de fazer o que é certo, correto, de ser o melhor possível dentro das nossas possibilidades e tocar a vida em frente, ir fundo, no buraco. 

Mas a gente não consegue cuidar apenas do próprio buraco. A gente precisa trepar no muro e espiar como é que o outro tá resolvendo o buraco dele. Há uma necessidade de comprovação de que estamos cuidando melhor do nosso buraco do que qualquer outra pessoa. De que o outro, coitado, está cuidando do buraco dele da maneira errada, [porque a nossa maneira é a certa]. E não é pra ajudar, não. É pra dizer que a minha ilusão é melhor que a sua, que minha verdade vale mais que a sua, que eu sou melhor que você e sei cuidar melhor do buraco que você. 

Afinal, isso nos faz bem, não é? dá aquela sensação de superioridade, aquele riso silencioso: “eu sou mais legal que você, olha só como meu buraco é bom. Um belo de um buraco!” 

Nós precisamos muito disso. É uma necessidade primária. Se não praticamos esse hábito, a nossa ilusão de grandeza não resiste. Precisamos de contraste, de algo com o que comparar, estabelecer proporções,  escalas, axiologias; e só podemos fazer isso cutucando o buraco do outro: é inevitável. 

A primeira vez que espiamos já sentimos o buraco do outro como pior que o nosso. Ali um defeitinho na borda, um matinho crescendo em volta do buraco, oh, sim, é certamente um buraco mais feio, mais bobo, mais sem graça, inferior, errado, fora de moda.

Claro, afinal eu estou no caminho certo, não é? fazendo o que é melhor pra mim, não é verdade? [e só acredito nisso porque comparo imediatamente a minha vida aos dos outros, coitados, que estão errados, equivocados, perdidos]. Precisamos ajuizar as ilusões do outro pra sustentar a nossa ilusão; pra não duvidar das nossas crenças, metas, objetivos e desejos pessoais, realizados ou planejados. Pra dizer que nosso buraco vai muito bem, sim, senhor, muito obrigado.

Julgar, atestar que são piores, mais fracos que nós; é pra diminuir o fardo no lombo, aliviar esse fardo de ilusões que carregamos; é pra sentir-se vivendo o certo, o bom, o legal; ou, pelo menos, minimamente confiantes pra seguir em frente, atrás de alguma coisa, crentes de que cuidamos direitinho do nosso buraco, sim, senhor, graças à Deus.

"Ah, eu não julgo"

Não? Então desconfio que você não seja humano e esteja além dessa coisa patética, desse duelo de foices às escuras, que nós chamamos de vida.


Um comentário:

  1. Pensar nisso traz um quê de ridículo, quase risível mesmo. Porque, nivelando, todo têm esse buraco a preencher - a segunda parte é que é preencher, de forma diferente, o que acaba podendo ser detalhe. Partimos do mesmo ponto, é o que quero dizer.

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oi.