26/07/2011

“Enfim, contanto, etc. É conforme".

Morei por um ano e pouco numa casa que não tinha sol. Era barato e mais ou menos bem localizado. A casa, antes um escritório, ficava dentro de um galpão, um estacionamento. A estrutura de aço corria de fora à fora, sobre os carros, e sustentava duas fileiras paralelas de kitinetes coloridos. Pequenos. Coloridos. Pareciam de brinquedo. Como se uma falsa vila holandesa tivesse se cruzado com um estacionamento. Era mais ou menos isso. 

A casa (um sobrado dentro do estacionamento), antes um escritório, era diferente dos kitinetes. Ficava no fundo, sobre a casa do dono do lugar. Tinha uma escada à esquerda, de ardósias tão largas que encapariam uma mesa sem qualquer dificuldade. Já não bastasse, era excessivamente íngreme. Não foram poucas as vezes que cheguei no topo da escada já respirando diferente. E foi por lá que eu subi, estranhando a largura dos degraus, as três portas de entrada da casa; e sem dar importância a ausência do sol. 

Isso acontece em algum mês perdido no primeiro semestre de 2004. Foi lá que escrevi a primeira versão do meu primeiro livro, num caderno azul, depois no 486 dx4, sem modem, 8 megas de Ram, que não rodava mp3 e nem emuladores do super NES, embora rodasse muito bem emuladores de Mega Drive (Street Of Rage), do Atari, (River Raid e Pac-Man) e Warcraf II. E muitas vezes, vi a luz do sol escorregar nas duas grandes janelas que davam do quarto pra cozinha, e chegar fraca e apagada, filtrada por uma claraboia estreita, rente a uma parede do outro lado, que eu nunca soube o que era. E tinha a impressora matricial que cuspia os trabalhos, e as duas caixinha de som ressoando um CD repetidamente, às vezes KID A do Radiohead. Às vezes Amnesic, às vezes uma coletânea do Travis, Joy Division, The Cure, ou o magnífico Turn on the bright lights ( PDA aos 3':09'' é a mais bela trilha para uma redenção inexistente). Era mais ou menos isso. 

E agora eu poderia começar a frase evocando adjetivos de autoconsimeração velada. Idealizar, simplesmente, tipo: “só as coisas boas ficam” no fim das contas. Que tudo faz parte do vivido, que o passado nos define, que faz parte da minha história, ou qualquer coisa assim. É um bom momento pra dizer isso, evocar obviedades diante de tanto afastamento. É fácil de fazer. É tudo tão longe, o estacionamento, a escada, a falta de sol, a falta de conversa, o descuidar sistemático. Tão distante que não dá mais pra distinguir o que aconteceu de verdade, daquilo é a mais pura distorção. Não dá pra diferenciar os fatos brutos dos fatos já esmagados e distorcidos defensivamente através do filtro da memória. Fica tudo maquiado. Um bom momento pra sacar uns minutos de sabedoria e dizer que “nenhuma experiência é gratuita”. Mas não. Seria como passar a desempenadeira numa parede completamente seca, dura, velha. E se eu topasse com um pedreiro passando uma desempenadeira numa parede seca e velha, arrancando a tinta e o reboco, a cena me pareceria, no mínimo, doentia. Memória é ficção.

O fato é que a falta de sol é o contorno que ficou. daquela época, da estranha época da casa sem sol. É mais ou menos isso. 

A certa altura, de um conto meu que saiu na Cult em 2009, está escrito: “escrevo essas coisas porque não posso viver”. Olhando hoje, acho muito estranho ter escrito aquele rascunho do livro naquele lugar. Estranho no sentido de que o que me levou a escrever, na casa sem sol, apesar de tudo, para o bem ou para o mal, não foi outra coisa senão um desejo de afastamento defensivo e radical do contexto e de uma realidade que me soterrava, e que era incompreensível (e ainda é). Uma tentativa dúbia de compreender e me aprofundar e de fugir ao mesmo tempo. Ou seja, uma fabulação. Aquela velha fórmula, a arte existe porque a vida por si não basta.

Claro, é só uma impressão. A minha impressão. Não sei se você entende. 

Mas, tantos anos depois, quando ouvi uma amiga declamar os primeiros versos ("um pequeno sol de bolso",) do poema do Paulo Henriques Britto, senti até um arrepio. Tava em Porto Alegre, no Van Gogh, fechando a noite de um sábado. E na mesma hora me veio a ideia de batizar este blog com esse nome. Porque me lembrei imediatamente daquela casa, do estacionamento, da escada, da claraboia, da falta de sol, “Enfim, contanto, etc. É conforme", como diria Fabiano. 

Lembro que fiquei pedindo para ela declamar o poema toda hora, até que eu decorasse. E eu decorei. Cheguei em casa e batizei o blog. É mais ou menos isso.

Tô falando essas coisas porque nunca coloco coisas pessoais aqui, pelo menos não assim nesse tom intimista e honesto que geralmente é comum nos blogs por aí. O blog tá beirando 53 mil acessos, em um ano e pouco, e chegando a cerca de 300 acessos por dia. E eu não sei dizer o que isso significa. Acontece é que quase nunca falo diretamente com você, que vem aqui e me visita com frequência. Tem uns que passaram de leitores a mais chegados, colegas de letras. Outros, que eram comentadores frequentes, vieram e foram embora. Uns visitam e não voltam mais. Têm os que visitam e me mandam emails, textos, me mandam mensagens pelo facebook. E aqueles que ficam quietinhos, espiando. No mais, só queria agradecer a companhia, o interesse e a paciência de vocês. Prometo emitir mais opiniões sobre qualquer qualquer coisa, e continuar enquanto der: “Enfim, contanto, etc. É conforme".

Um abraço. 

“que não propriamente ilumina
mas durante seu percurso
dissipa a neblina” 




2 comentários:

oi.