01/07/2011

Já não há deveres


“Mas sabe porque nós somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? 
A razão é simples! Para com eles, já não há deveres." (Camus, In: A queda) 


Com os mortos não há assimetria. A relação é vertical. Nós somos os senhores supremos, os sujeitos, a voz que ordena e define; o morto só existe enquanto memória, não carece de afeto, de entrega, atenção, de nada.  

E mortos não são apenas aqueles que estão soterrados sob o duro silêncio do mármore; são também aqueles com quem não temos mais nada em comum, com os quais o vínculo se quebrou, como um nó desfeito numa corda apodrecida debaixo do sol. Não há deveres práticos com esses ausentes, e sem os deveres práticos, que exigem esforço, atenção e cuidado, nossa relação com os ausentes é totalmente idealizada. A chatice some. A feiura se ameniza. A mesquinharia se transforma em nobreza. O vazio ganha sentido.

Cômodo, confortável, leve, fácil. Irreal.

Não precisamos dar atenção e carinho; não precisamos suportar as críticas certeiras de um amigo ou amor defunto, o ronco, o mau hálito numa manhã de domingo chata e chuvosa, lidar com birrinhas, reclamações,  falas repetitivas, engolir argumentações chulas só para evitar aquele tipo de embate exagerado e melodramático na fila do supermecado, por causa da marca de manteiga, numa quarta-feira niilista e de mau humor absurdo, porque seu dinheiro está no fim e ainda é dia 19.

Aqueles a quem deixamos para trás quase não têm defeitos, muito menos divergências conosco. Por isso não precisamos nos submeter a convenções de convivência, como assistir aquele filme que não gostamos ou ir naquele bar com conversas e pessoas entediantes só para manter à sociabilidade no nível da aceitação. Não há contratempos com fantasmas, não nos exigem nada, não há cobrança.

Não temos deveres práticos para com os mortos, ausentes, vínculos quebrados, e nem eles conosco. Nosso ego está sempre protegido. Afinal, na relação com o ausente, a bem da verdade, nos relacionamos com nós mesmos, com a imagem projetada do outro: uma extensão daquilo que queríamos que ele fosse para nós. E nunca é. Nunca foi.

Se depois de anos, houvesse a possibilidade de entrar numa máquina do tempo e encontrar um ausente, um amigo defunto, a professora brava da quinta série, um ex-amor, naquela mesma situação (que sempre contamos com um riso nos lábios e cobertos de nostalgia), a decepção seria terrível. Tédio, mesquinharia, fastio.

A morte e a quebra de vínculo seguida de distanciamento temporal nos enganam, produzem um melhoramento artificial das coisas. Mas, fora da maquiagem do tempo e da deturpação intencional e autodefensiva da memória, tudo é mais áspero e sem graça.

É um tipo de amor platônico, essa relação com o ausente (morte e passado). E como todo amor platônico, ao esbarrar na realidade, se esfacela na decepção e no fracasso completo.

***
Idealizamos e supervalorizamos os ausentes e nos esquecemos dos próximos e presentes.
Deveria ser o contrário.


2 comentários:

  1. A escrita é um dom... Dom esse que os torna menos ignorante do que nós... Nós, que nao sabemos nem como desvendar nossas atitudes... Aquele que sabe, dizer em palavras alguma coisa que, pra quem le, está falando sobre sua própria vida é dos mais sábios...!!!
    Muito pertinente.

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  2. Nao sei se eh verdade mas eh mesmo, muito mais facil amar ou odiar quem nao existe mais... Cada um criando sua ficçao diaria com seus personagens mortos,desaparecidos...

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oi.