19/07/2011

feito bicho, sem sol, amuado

Você estica os dedos e a catraca suga seu bilhetinho como se tivesse fome desses bilhetinhos que custam dois e noventa. E você é um dos poucos que tem o bilhetinho, todo mundo têm um cartãozinho mágico que libera catracas de trens, ônibus, metrô, e deve até abrir portas de cofres, ou corações calejados por pancadas secas de indiferença e silêncio. Uma chave mágica. Você tem um único bilhetinho, são muitas catracas, muitos buraquinhos de sugar bilhetinhos. E talvez seja carência, a causar essa fissura libidinosa da catraca, ao engolir seu bilhetinho como se chupasse e dissolvesse o último fiapo de algodão doce do planeta. 

Nas catracas ao lado da sua, apenas o barulhinho indiferente de um cartão magnético, o baque da catraca que gira, os sapatos velozes de quem avança como se fugisse de alguma coisa. E todo mundo corre como se tivesse feito alguma merda, ou tivesse que evitar alguma dessas merdas inevitáveis. Daí a sensação de que tem porque tem alguma coisa muito louca acontecendo nalgum lugar. 

Mas não tem nada acontecendo. É só impressão. A sua impressão.

Seu bilhetinho desaparece e você está livre para empurrar. 

E você empurra. 

Mas não é agora que vem a frase (ou imagem) na sua cabeça. Há a fila, e você precisa manter-se à direita da escada como um caminhão carregado de areia na estrada (é uma regra), facilitar a passagem do cara que acordou dez minutos atrasado (por causa daquele filme), e a mulher que parou de conversinha com a vizinha na saída de casa (a filha do Seu Guilherme do 304 tá grávida), o menino que precisa chegar dez minutos mais cedo para ver a menina de cabelos amendoados (saltar do carro do pai e atravessar o portão da escola), e o cara que finalmente conseguiu uma boa entrevista de emprego e precisa chegar com tempo de sobra (porque não sabe muito bem onde é), toda uma legião de etcéteras subjectivos, com pressa, à sua esquerda, elevando ao dobro o movimento rumo ao fundo, onde a fila se dispersa em pequenas filas marcadas pela faixa amarela. 

Atrás da faixa amarela até soar o alarme, a porta mecânica se abre. 

Se a sorte estiver do seu lado, você poderá ficar de pé por duas estações, no máximo três. Senão, ficará de pé até o final. Mas não é esse o problema. 

Não há sol aqui. E talvez seja essa a causa do sono, cravando pés de ferro dentro dos olhos, que pesam, afundam de forma incontrolável, governados por algum tipo de maquinismo obscuro. E você não é o único. Todo mundo está meio sonolento ou cochilando, contaminado: o sonífero exalado da ausência de luz natural, à medida que o friccionar de trilhos, cabos, ferragens, se propagada num movimento que parece ir sempre no mesmo sentido.

É só impressão. A sua impressão.

Se você conseguir uma vaga para sentar-se, logo estará com o braço apoiado no vidro, formando um arco para apoiar a cabeça, grogue, meio-zen. Dissolvido.

Feito bicho, sem sol, amuado. Essa é (era) a frase na sua cabeça.

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