05/07/2011

Escavações da infância



Entre aquelas história que a mulher da esquina contava, quando éramos crianças, a que mais me impressionava era de uma missa:

Um homem vem a cavalo até à cidade, assistir à Missa do Galo. A igreja está lotada. Mesmo que não reconheça ninguém ali, nem mesmo o padre, o homem encontra um lugar ao fundo da igreja e assiste à missa tranquilamente. Reza, agradece, toma hóstia. Ao final, deixa o lugar em silêncio.

Sobe no cavalo e toma o rumo de volta, até que cruza com um conhecido.

“Não vai na missa?”, pergunta o conhecido.

“Uai, tô vindo de lá, a Igreja tava lotada”, responde o homem.

“Tá doido?”, diz o outro. “Agora que são onze e meia. Que missa é essa que cê foi?”. 

Descrente, o homem acompanha o conhecido de volta à cidade. Chegando lá, reconhece o padre, o coroinha, reconhece quase todo mundo. Então constata, perplexo, que a Missa do Galo, de verdade, estava prestes a começar. 

A mulher falava que tinha acontecido naquela igreja ali, que por aqui chamamos de Igreja Velha. 

A Igreja Velha (1798), entre outras coisas, remete à fundação do município. Ali foi erguida a primeira capela, nos tempos que esse lugar ainda era um povoado, antes mesmo de ser elevado à distrito, pertencente à Lavras do Funil.

No entorno, havia um cemitério, depois desativado, sem deixar quaisquer sinais.

Nessa mesma época que a mulher da esquina nos contava essas histórias - as máquinas escavaram o terreno da Igreja, na ocasião de uma reforma. Gostávamos muito de ver aquelas máquinas trabalhando. Eu, Rodrigo, Lindomar, Marcelinho Black, Joãozinho, Ti Rani.

Ficávamos impressionados com a lâmina gigantesca da patrol cortando e empurrado a terra; a carregadeira furiosa, elevando a boca absurda no ar, infestada de dentes de aço; além dos movimentos das engrenagens, braços e articulações jurássicas, e o caminhão basculante despejando um mundo de areia e cascalho no chão. 

Num daqueles dias, enquanto a gente brincava no banco de areia debaixo da Igreja, a carregadeira, revirando a terra, encontrou umas ossadas. 

É uma das visões mais marcantes da minha infância, junto da vez que vi uma jararacuçu engolindo um rato,  do dia que deixei o pote de mel cair no meio da rua. Não me esqueço de ver aquele pedaço de crânio, com o fosso dos olhos, o fêmur, costelas, e outros cacos de ossos despontando de tempos imemoriáveis, da vermelhidão da terra. Afinal, naquela época, além das histórias que a mulher da esquina contava, minha imaginação vivia povoada com as escavações de Indiana Jones, com as aventuras de Atreyu, com as gravuras das enciclopédias que folheava (e como não sabia ler, para apropriar do livro), recortava e pregava dentro do guarda-roupas, para o desespero dos meus pais. 

Os homens juntaram aqueles ossos num saco. Enfiaram na traseira de uma camionete e sumiram com aquilo, talvez para mostrar a alguém entendido, algum superior misterioso, escondido numa sala secreta, nos porões de alguma repartição pública. Nunca soube o que aconteceu. Sei que fiquei frustrado, porque para mim, aquela ossada pertencia a uma das personagens daquela história que a mulher contava. Era a prova científica de uma lenda. E por isso, aquela história do homem que ia à Missa do Galo, era a história que eu mais gostava. 

***

Fiquei muitos dias pensando naquela ossada. Minha ideia era organizar uma escavação por ali. Mas os homens que trabalhavam na reforma, depois de encontrado a ossada, tinham recebido ordens para nos manter afastados do local. Além, é claro, dos nossos pais nos proibirem de ir lá, com medo de doenças, ou qualquer coisa do tipo. 

Mas a vontade era maior. 

Quem topou ir comigo foi o Marcelinho Black, com quem eu tinha o hábito de ir pegar girinos no Córrego Grande, para criar em aquários improvisados com bacias de alumínio, latas de óleo, copos de massa de tomate. Não fazíamos muito bem essa ligação do girino com aquilo que ele se tornava quando adulto. E ainda bem que nossas mães sempre jogavam nossos viveiros de anfíbios fora, afinal, não sei qual seria a minha reação ao acordar com um sapo ou uma rã saltando dentro do quarto. Tem tempo que não vejo o Marcelinho Black, mas confesso: não fiquei espantado, no dia que fiquei sabendo, que ele, hoje, é biólogo. Sempre foi, mesmo em potência.

Nosso plano era esperar os caras irem embora da Igreja. Então, cavucar aquela terra à procura de uma caveira, um braço, uma mão, um dedo do pé que fosse. Ficamos matando o tempo com uma bola dente de leite, espiando de longe os caras trabalhando, o caminhão que ia e vinha, até chegar a hora. Deu certo. 

Ao cair da tardinha, com o lugar vazio, munidos de duas caixas de sapatos e uma pequena pá de juntar cisco, tomada emprestada da cozinha da minha casa, mergulhamos nas escavações. Enquanto mergulhava a pá na terra vermelha, minha cabeça visualizava esqueletos completos, algo como o exército do imperador Qin fundido as caveirinhas de Golden Axe, e até um corpo-seco, essa múmia mineira, com unhas e cabelos crescidos depois de morto. 

Como é comum, a realidade é sempre mais estreita. Nada de caveirinhas armadas de escudos, ou fazendeiros de outro século, com leite fresco na barba grande. Encontramos uns caquinhos de osso, bem miúdos, encardidos de terra. Sete caquinhos ao todo. O Marcelinho Black ficou com quatro, porque eram menores, eu fiquei com três, que eram maiores. Depois de dividir, tocamos para casa. 

Entrei com aquela caixa debaixo do braço na maior naturalidade. Meu pai assistia ao jornal e nem perguntou do que se tratava. Passei direto para o quarto. Coloquei a caixa de sapato no melhor esconderijo do mundo. Embaixo da cama. 

Mais tarde, antes de dormir, puxei aquela caixa e fiquei mexendo nos ossos. Tentando supor a que parte do corpo pertenciam tais pedaços. E se aqueles pedaços, assim como imaginei da caveira que a máquina tinha arrancando da terra, pertenciam também às personages fantasmagóricas daquela história, que a mulher da esquina nos contava. 

Minhas investigações arqueológicas duraram pouco. No dia seguinte, enquanto eu estava tomando café, antes de ir à aula, ouvi minha mãe gritar do quarto, perguntando o que é que era aquilo embaixo da cama. Primeiro falei que eram ossos de vaca, tentando diminuir o baque. Mas não funcionou, ela fez uma cara de nojo e disse que eu tava maluco em trazer osso de bicho para dentro de casa. Então eu disse que era osso de gente, lá da igreja, na tentativa de atestar o valor daquela caixa de sapato. 

Mas foi pior. 

“De gente?”, ela disse, como se estivesse segurando uma lasca de fígado ainda quente, antes de correr com aquilo para o quintal e tascar a caixa com tudo, lá no lote vazio, do lado da nossa casa. 

Eu senti um aperto terrível, me enfiei no quarto sem entender muito bem. 

Mas quando encontrei o Marcelinho Black, no outro dia, na esquina de casa, ele me contou que, além de sumir com os ossinhos dele, a mãe dele tinha colocado ele de castigo. Daí, eu me senti melhor. A realidade era frustrante - tudo bem - mas pelo menos não estava sozinho naquela situação.


5 comentários:

  1. Estórias de Luminárias. Hehehehe. Muito bom.

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  2. Mas esta com certeza é história.......

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  3. Minha quarta feira estava meio uma porcaria. Larguei toda a chatice desse meu cotidiano , e veja o que encontrei...Me agrada muito esse seu jeito, que é só seu , de contar as coisas. Meu dia ganhou sentido mais profundo com um mundo de coisas pra pensar, lembrar, refletir...Coisa boa!...

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  4. Cara, muito boa a historia...hehe Seria legal mesmo um dia tu acordar com um sapo pulando no quarto fico imaginando a cena...haha

    Abraço! =D

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  5. As histórias de infância causavam (e ainda me causam) um certo ar de medo e curiosidade ao mesmo tempo.

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oi.