15/01/2011

Black Swan: técnica x pulsão

Dias desses assisti “Black Swan” (2010), e acabei lembrando de “Paris não tem fim”. Eu que não sou lá um cinéfilo(acabo de fundar a tag cinema aqui), acabei gostando do filme por motivos estranhos. Se você não viu o filme, não leia isso, porque vou rechear o texto de spoliers. 

O enredo é aparentemente simples. Nina (Natalie Portman), atormentada por atingir uma suposta perfeição, deseja o papel da Rainha Cisne no famoso espetáculo O Lagos dos Cisnes. A Rainha Cisne é composta de duas faces: o Cisne Branco e o Cisne Negro. Nina é detentora de uma técnica perfeita, movimentos milimétricos e que, por isso mesmo, deixam transparecer artificialidade.

O coreógrafo Thomas Leroy (Vincent Cassel), diz que Nina tem toda a potencialidade para encarnar o Cisne Branco; mas, falta a pulsão necessária a interpretação do Cisne Negro. E nesse jogo de claro e escuro, Nina tenta romper com suas limitações de maturidade e sexualidade para atingir visceralidade necessária a interpretação perfeita. Essa fusão de técnica e visceralidade, de claro escuro, vai se desenrolando ao longo do filme numa metamorfose psicológica incluindo delírios e paranóias, que tenta ser tensa (eu, pelo menos, não senti a tensão, mas tudo bem). De toda forma, entende-se muito bem as deixas do diretor Darren Aronofsky (o mesmo de Requiem for a Dream, 2000), entende-se até demais. O filme consegue ser didático nas metáforas e simbologias, e isso chega a ser esquisito. 

Estende-se, por exemplo, que a cena de sexo lésbico encarna uma simbologia antropofágica ambivalente: Nina devora Lyle (Mila Kunis) para possuir suas características, já que Nina, paranóica, projeta em Lyle o ideal do Cisne Negro, e Lyle devora Nina; nas paranóias de Nina, Lyle deseja roubar seu lugar. Mas não é o bastante, então, mais à frente, feito um gafanhoto fêmea, ou num complexo de Édipo torto, Nina acaba matando Lyle simbolicamente através de um delírio para assumir o lugar do Cisne Negro, só que, no fim das contas, mata a si mesma, afinal, são projeções de sua cabeça perturbada. 

Quando atinge a suposta perfeição, padece através do suicídio igual padece à personagem que ela interpreta. Se aniquila na fusão completa de arte e vida, da fusão completa entre esforço técnico e pulsão artística, da fusão completa entre representação e expressão visceral.

O filme é tão correto como um balé bem ensaiado. Nenhuma cena, fala, trilha, nada fora do lugar, nada é gratuito.  Daí, que eu acho, que o filme, formalmente falando, tá mais pra planilha milimetricamente calculada de um Cisne Branco, do que pra sedução e pulsão de um Cisne Negro, e, nesse sentido, deveria se chamar Cisne Branco e não Cisne Negro. [Poderia se encaixar na categoria de tragédia, no sentido de tragédia clássica, mas como não há conhecimento prévio do fado da personagem... com boa vontade, se encararmos a autoflagelação como pista de um suicídio evidente, talvez, mas acho pouco, afinal. a autoflagelação por um lado é um sintoma físico da pertubação/sintoma da metamorfose, e representa uma depuração rumo à perfeição desejada pela personagem, assim como os religiosos o fazem. ]

E isso é engraçado. Porque o cisne negro é, além de tudo, o símbolo da imprevisibilidade. (ver aqui

" cisne negro é um acontecimento improvável e que, depois do ocorrido, as pessoas procuram fazer com que ele pareça mais previsível do que ele realmente era."

Será que eu caí nessa armadilha? Se caí, o filme é absolutamente genial.

Por outro lado, Black Swan, de imprevisível, não tem absolutamente nada. Falta ambiguidade. Não há o mínimo esforço de parecer imprevisível. Só admitindo que a mais monstruosa imprevisibilidade está justamente encarnada numa bizarra e perfeita previsibilidade. 

Mas aí seria forçar a barra demais, eu acho. 

*

(forçar a barra vai ser agora)

Mas não era isso que eu queria falar. Eu tava pensando era nesse jogo técnica/pulsão que o filme esbarra, com relação à escrita cerebral e escrita intuitiva, voltando à “Paris não tem fim”

Primeiro à escrita cerebral ou o “cisne branco”, o jovem alter-ego de Vila-Matas, pedindo um conselho a Marguerite Duras: 

“ ' Um conselho, é disso que preciso, de ajuda para o romance', Marguerite entendeu dessa vez perfeitamente: 'Ah, um conselho', disse, e me convidou a sentar ali na ante-sala (...) voltou depois com uma apostila que parecia uma receita médica e continha algumas instruções que podiam – disse-me, ou acreditei entender que me dizia – ser úteis para escrever romances. Peguei a apostila e fui direto para rua. Li as instruções que continha (...) e notei que de um só golpe caía todo o peso do mundo sobre mim. Ainda hoje me recordo do pânico imenso – o calafrio, para se mais exato – que senti aos lê-las:
1.Problemas de estrutura. 2. Unidade e Harmonia. 3. Trama e história. 4. O fator tempo. 5. Efeitos textuais. 6. Verossimilhança. 7. Técnica narrativa. 8. Personagens. 9. Diálogos. 10. Cenários. 11. Estilo. 12. Experiência. 13. Registro lingüístico.” 

Agora, o “cisne negro” e a escrita visceral-intuitiva, quando o narrador descreve a mesma Marguerite Duras que havia lhe entregado a apostila: 

“Eu a recordei sempre como uma mulher violentamente livre e audaz, que encarnava a si mesma e com sentimento de urgência – com seu inteligente uso, por exemplo, da libertinagem verbal, que em seu caso consistia em sentar-se numa poltrona de sua casa e, com verdadeira ferocidade, despachar com gosto – todas as monstruosas contradições que reúne o ser humano, todas essas dúvidas, fragilidades e desamparo, individualmente feroz e busca do desconsolo compartilhado, enfim, toda essa grande angústia que somos capazes de desdobrar frente à realidade do mundo, essa desolação da qual são feitos os escritores menos exemplares, os menos acadêmicos e edificantes, os que não estão propensos a dar uma correta imagem de si mesmos, os únicos de quem não aprendemos nada, porém os únicos que têm a rara coragem de se expor literalmente nos seus escritos – onde despacham com gosto – que admiro profundamente porque somente eles vão fundo e me parecem escritores de verdade.” 

Entendeu o que eu tô querendo dizer, leitor? 

Pois é, é uma relação capenga, mas isso é falta de ter alguém em quem descarregar essas relações improváveis. Se você chegou até aqui, você tá com paciência. E, aliás, obrigado.

3 comentários:

  1. "os escritores menos exemplares..." isso aqui me impressionou e me fez comentar. seria o tal deixar-se levar, que o coreógrafo repete insistentemente? a sua análise do filme "certo/errado", "técnico/visceral" tá intrinsecamente ligado ao ato de escrever: sua análise dos "2 cisnes" no final, é excelente. tormento tão imprevisível qto criador. já fiz oficinas na busca de uma "técnica", mas os retornor positivos que recebi, sempre foram pela minha talvez inábil exposição. seus escritos sempre me esclarecem. e algo me diz que tô no "caminho certo"; não quero ser perfeito. tk's.

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  2. Heitor,

    A tendência hoje é a hegemonia da técnica e da escrita cerebral, com escrita criativa nas universidade etc; de toda forma, ao que parece, no próprio meio já existe uma negação da técnica pura e simples(não aqui no Brasil, que a coisa ainda é recente); de toda forma, são coisas inseparáveis e a única coisa que me parece ser fundamental para escrita (terminar os projetos), ter a intuição mais ou menos segura que se está no caminho "certo", é a confiança em si mesmo, um tipo de fé que se conquista com esforço e persistência; há quem encontre na técnica pura, há que encontre de uma forma meio "intuitiva", o importante é encontrá-la e seguir em frente.

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  3. so falando em relaçao ao filme, acredito que vc caiu na armadilha,sim...hehe

    Gostei do post sobre cinema deverias escrever mais...

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oi.