"Há maneira de falhar na solidão, como em sociedade".
Três e quarenta e cinco e o terminal rodoviário de uma cidade pequena como Três Corações a essa hora não é nada acolhedor. Talvez em nenhuma outra hora. Os dois ou três gatos pingados arrastando os pés entre cadeiras vazias, de frente a guichês fechados, são daquele tipo de sujeito que não tem medo de nada. Nenhum lugar pra ir, nada a perder. Completamente livres e soltos. Claro, é o que você imagina. Porque você não sabe nada a respeito desses caras. E no fim das contas, pensando direito, você sabe muito bem que sabe muito pouco sobre as poucas pessoas que lhe são mais íntimas, as que você julga conhecer, e sabe menos ainda sobre si mesmo, [ou pelo menos acha que sabe alguma coisa]; o que dizer desses caras vagando a esmo, dos quais você não sabe absolutamente nada a respeito?
Nada a dizer.
O único lugar aberto no terminal é uma lanchonete fuleira. Mesmo assim, o lugar está apenas tecnicamente aberto. Não dá pra entrar lá dentro. Cadeiras amarelas de plástico empilhadas funcionam como uma espécie de muro de contenção na entrada do lugar. Um cara de tronco quadrado e blusa de militar folheia um livro [a arte de pregar a palavra, alguma coisa assim], enquanto a televisão num volume muito alto e mal sintonizada exibe a imagem de um pastor falando que não adianta o pão de trigo [não, não adianta nada], se o pão do amor não está na sua mesa.
***
Era ali que o cara estava. Bem arrumado. Uma sacolinha enfiada debaixo do braço, de frente ao balcão, espiando o pastor falar, espiando aquele bar na esquina do outro lado da rua, onde uns caras gritavam e riam. Mas eu não reparei nos sapatos do cara.
Eu acendi
um cigarro e me lembrei que a bateria do meu celular estava nas
últimas. E me lembrei de tudo que tinha acontecido até ali. Das tantas vezes que tinha parado naquele lugar [mas nunca as três e quarenta e cinco]. Uma passagem no bolso, o sol escorrendo no gramado do outro lado, comendo uma cigarrete e o coração cheio de expectativas. E no fim das contas, me pareceu uma boa ideia comer uma cigarrete àquela hora.
Olhei na estufa. Três coxinhas com manchas de gordura, um espetinho esturricado. De resto, travessas de alumínio engorduradas, e aquelas travessas de alumínio vazias me deram vontade de chorar.
Olhei na estufa. Três coxinhas com manchas de gordura, um espetinho esturricado. De resto, travessas de alumínio engorduradas, e aquelas travessas de alumínio vazias me deram vontade de chorar.
“Me
empresta o fogo?”, disse o cara.
Eu
estiquei a guimba do cigarro e o cara acendeu a ponta de um cigarro
de palha. Agradeceu e soltou um longo e demorado trago, formando uma bola de fumaça que encobriu o rosto do cara.
Não
adianta ter o pão de trigo, se o pão do amor não entrar na sua casa.
Um bando
de caras saiu do bar do outro lado da rua. Caras de boné e capuz
enfiando na cabeça. Falando alto demais. Então de repente se
calaram e ficaram parados encostados num carro, do outro lado,
olhando.
“O
senhor vai pegar o ônibus das cinco?”, eu perguntei pro cara.
“Não, não... Vou pra BH hoje ainda. Tô esperando a assistência
social me arranjar a passagem”.
“Certo”.
“Tá foda. Bati perna pra caramba hoje. Até furei o sapato”.
Ele virou o sapato pra mim, e a sola tinha despregado do resto. Um
sapato marrom, de couro. E o cara estava sem meias.
“É foda”, eu disse.
“Tem lugar que a gente nem pode ficar assim, esperando amanhecer.
Não deixam a gente nem sentar. É muito nóia, irmão. Muito nóia”.
Eu olhei meio disfarçado pros caras do outro lado da rua.
Continuavam lá, capuz enfiado na cabeça, conversando baixinho. E me
lembrei que tinha que dar um jeito na bateria do celular. Então fui
até o balcão. Perguntei pro cara com blusa de militar se eu podia
dar uma carga no celular. O cara fez que sim, e disse pra mim ter
cuidado, ficar de olho, ficar esperto. E voltou a ler aquele livro.
Empurrei as cadeiras amarelas pro lado. Coloquei o celular pra
carregar e escrevi uma mensagem. Quando voltei, acendi outro cigarro.
“Bati lá no albergue, mas tá fechado”, disse o cara. “Depois
me falaram que não abre mais”.
“É complicado”, eu disse.
“Uns vinte e cinco anos, mais ou menos”, disse o cara, “a gente
chegava numa pensão e mostrava os documentos e o pessoal recebia a
gente bem demais. A gente tinha documento, sabe? E às vezes até arranjava uma coisa pra gente fazer, um servicinho. Hoje tá complicado. Se
não pagar adiantado, não tem conversa. Documento hoje não vale
nada”.
Eu não sabia o que dizer. Pensei em oferecer um café pro cara.
Mas não queria tirar o pouco dinheiro do bolso àquela hora. E os
carinhas do outro lado da rua continuavam olhando.
“Tinha muito gato também. O cara via a gente chegando com uma
trouxinha nas costas e já chegava: 'Irmão, tá querendo serviço?',
daí arrumava um alojamento e um trampo pra gente. Às vezes serviço
de roça, qualquer coisa. Hoje não tem mais isso. No tempo da
ferrovia também era beleza. Carregamento de calcário, brita,
carvão. Era pesado pra caramba. Mas tinha muito serviço”.
Eu ouvia e não sabia o que dizer. Fiquei pensando como a
vida daquele cara tinha tomado aquele rumo. E por que tinha tomado
aquele rumo. À deriva. Conduzido aquele cara até aquele lugar, completamente sozinho,
agarrado a esperança de conseguir uma passagem. Uma passagem e mais nada.
Uma gaiola saiu à procura de um pássaro, como diria Kafka.
Uma gaiola saiu à procura de um pássaro, como diria Kafka.
“Pra entrar numa firma aí, precisa de comprovante de residência,
mas pra alugar uma casinha aí, precisa de fiador. Mas ninguém
conhece a gente, cara. Como é que arranja fiador?”.
Pensei em dizer pro cara [citando Kafka] que há esperança, esperança infinita, mas não para nós. Mas não. Não disse nada.
Pensei em dizer pro cara [citando Kafka] que há esperança, esperança infinita, mas não para nós. Mas não. Não disse nada.
Dois carinhas saíram do bando lá do outro lado e vieram caminhando
na direção da rodoviária.
Olhei pros lados, sei lá procurando o quê. Abaixei a cabeça e
continuei ouvindo o cara falar. Ouvindo o pastor falar de pão, trigo, amor.
O cara de capuz chegou e pediu um cigarro. Olhou pra trás enquanto o
cara de casaco militar mexia nos maços de cigarro. E não sei
porque, mas olhei pro cara. Os olhos do cara estavam vidrados, no meio do
rosto recortado pelo capuz. Então eu abaixei a cabeça e fiquei
olhando pros sapatos marrons do cara.
Um dos caras do outro lado da rua gritou alguma coisa. Barulhos de
portas de carro batendo. Barulhos, apenas. E quando dei por mim, estava tudo quieto demais, o carinha de capuz tinha ido
embora.
O pastor continuava falando de pão, amor, trigo. E como a palavra do senhor é transformadora. Aceite o Senhor
na sua vida, dê a mão à Jesus e deixe que ele conduza a sua vida no caminho da glória e da felicidade. O caminho da paz, da
vitória, do amor incondicional. Estenda a mão ao mestre Jesus.
Estenda a mão, meu irmão!
Estiquei a mão pro cara. Deixei o resto do meu maço de cigarro com
ele. Uns quatro ou cinco cigarros. Meu ônibus já estava no terminal. Entrei, joguei a mochila na
poltrona do lado. Puxei uma barra de cereal na sacolinha. E quando o ônibus saiu, desabei a chorar.
Bonito pra caralho!!!
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