05/12/2014

Sexta-feira

O siso estava fraturado e latejando e a dor se espalhava pela fileira de dentes. Não dava pra saber de onde vinha. Doses cavalares de analgésicos e anti-inflamatórios não faziam mais efeito. Às vezes vinha uma onda aguda como se uma agulha incandescente transpassasse o dente até o osso. Vai ter que extrair, disse o doutor. Eu disse que tudo bem. Duzentos e oitenta, ele disse. Depois completou: Até duas vezes, se quiser. Sem problemas, eu disse. Tomei um comprimido e depois me sentei na sala de espera. Ia demorar pelo menos uns vinte minutos pra realizar a extração. Tinha uma fonte d’água borbulhando embaixo da escada, logo atrás da mesa da secretária. Eu me levantei e fui dar uma olhada. Não tinha mais nada pra fazer. O poço artificial era bem realista. Revestido de pedras escuras e com plantas espalhadas de um lado a outro. E as carpas amarelas nadando de um lado a outro. A imagem bruxuleante de rabos serpenteando vermelhos e as bocas num abre e fecha igual velhos banguelas mascando a própria língua.

***

O ônibus cruzou a Av. Santa Catarina e entrou na Alba. Era um desses dias secos e quentes em que a camisa gruda feito lesma nas costas e o Sistema Cantareira cai dois pontos e você não aguenta mais engolir saliva na inútil expectativa de dar um jeito na boca seca. Lá fora o céu oferecia um azul embaçado e pálido. Nenhuma nuvem. Era sexta-feira. A gente tinha pensado e descer pro litoral, mas eu precisava entregar um trabalho. E também já tinha usado todas as faltas daquela matéria. Na sexta-feira as ruas sempre ficam cheias de churrasqueiras e homens com latinha de cerveja e fumando cigarros desses maços de nomes indecifráveis. Alguns de uniforme e outros nos trajes mais neutros. Nalgumas vezes aparece um chapéu, sem qualquer retórica de modismo, uma noção de elegância que não existe mais. O fato é que bem no pé do morro um córrego negro segue seu rumo, a despeito do lixo brotando de todos os lados. E então vem aquele cheiro de esgoto e o cheiro suculento de carne fresca na brasa. Tudo ao mesmo tempo. É difícil saber o que sentir. Mas num desses corredores, onde ainda despencam cartazes de políticos da eleição municipal de 2012, misturados com as eleições deste ano, crianças correm livres. Na rua. Ao redor de carcaças de carros e motos. Descalças. Sem camisa. E ao longo do morro, depois da ponte, mulheres sentadas no passeio, com cadeiras na porta de casa. Janelas abertas, portas arreganhadas. Nada de grades. E bebês de colo engatinhado na calçada. A liberdade de um parque dinamarquês ou de cidade de interior.

***


Num farol antes da avenida que dá para o metrô, há uma oficina de eletrônicos. TV’s de tubo, Microsystem CEE e até um toca-discos. Comfortably Numb está tocando tão alto que abafa o barulho do motor do ônibus e os ruídos da cidade. Dois homens conversam aos gritos e rindo e cada um com uma latinha de Antarctica na mão. As telas atrás deles estão todas sem vida. Os homens parecem companheiros de longa data, como toda dupla de bêbados. Parecem estar naquele ponto da conversa onde se alcança algum tipo de grande iluminação sobre um fato mais ou menos obscuro da vida: nostalgia, morte, amor, a extinção das fitas K7.

Mas a gente sabe como isso termina. 

E sexta, hein, Roberto?, diz um deles, quando se encontram na segunda. 

O outro ainda se esforça, mas sabe que é inevitável: Não lembro de nada.

Nem eu.

18/11/2014

Revista Jangada




Só pra avisar que saiu um texto meu na Revista Jangada. Trata-se de um texto de ficção que faz parte de um projeto ainda em desenvolvimento e sem prazo pra terminar. Pra ler a parada é só clicar aqui.

Até.

04/11/2014

Além da imaginação






Amigos, escrevi um artigo sobre por que a versão original da série The Twilight Zone é tão assustadora. Se tiver interesse, é só clicar aqui. 



23/10/2014

Galos, quintais e as casas de sete dígitos



Como hábitos tradicionais e saudáveis só adquiriram valor e status depois que passamos a pagar — e caro — por eles






Dia desses fomos até a Zona Cerealista, no Brás, próximo ao Mercadão. É um conjunto de ruas cheias de armazéns que vendem todo tipo de coisa a granel. Depois que o Joaquim nasceu, a gente tem se esforçado em abastecer a casa com coisas saudáveis. Nem sempre é fácil. O preço dos orgânicos e integrais é bem mais salgado que os industrializados. E acho que nunca vou me acostumar com as cifras exorbitantes do quilo de chuchu – um troço que eu sempre comi de graça.

Cresci numa casa com um quintal repleto de galinhas e árvores frutíferas: goiaba branca e vermelha, jabuticaba, três qualidades de laranja e mexericas, gigantescas bananeiras com cachos despencando. E o abacateiro robusto com uma casinha de João de Barro mal ajambrada nos galhos. Sem contar os vastos canteiros de hortaliças que meu pai cultivava desde sempre. Couves com folhas que davam para fazer um chapéu.

Tive vários cachorros e gatos, que conviviam em harmonia com porcos e pintinhos. Era quase um sítio.

Meu pai também costumava arrendar terrenos e plantar feijão, arroz e milho. Lembro dele com o típico chapéu de palha na cabeça batendo feijão no fim de semana. A vara estralava e os grãos se soltavam na lona. Depois ele varria tudo e passava na peneira e guardava tudo numas latas de metal de vinte litros. Muita gente fazia o mesmo. Acho que a prática não deve ter desaparecido de todo, mas no meu tempo de criança era comum andar pela rua e ver feijão secando na frente de inúmeras casas. E mesmo nos armazéns e mercados havia arroz e feijão a granel, tudo produção local, que a gente comprava com caderneta. Não sei se existe mais.

Até a carne do açougue vinha de um matadouro que ficava ali perto de casa. As vacas eram conhecidas – se é que você me entende.

O tempo foi passando, chegou o micro-ondas e as prateleiras dos mercados ficaram mais coloridas e variadas – a geração do meu pai foi logo seduzida pela publicidade das nítidas imagens da TV com Parabólica.

A ilusão de maximizar o tempo. O tempo economizado é gasto trabalhando mais para pagar as coisas que nos prometiam garantir mais tempo livre.

Sem querer parecer alarmista e romântico: a ideia de progresso e cidadania ancorada nas ilusões propagadas pelo consumismo ainda vai nos levar ao fundo do poço.

Ao invés de criar galinhas e matar na hora, de reservar os restos de comida para engordar porcos, passaram a comprar carnes e frutas industrializadas. Acho que em algum momento comer frutas orgânicas, diretas no pé, ou galinhas caipiras mortas na hora, manter um chiqueiro no fundo do quintal, era sinal de atraso e pobreza. E ninguém quer parecer pobre e atrasado. Era por isso que quando recebíamos convidados comprava-se Coca, ao invés de fazer um suco com laranja sangue de boi. Ou se comprava um frango anabolizado e peças de porco embaladas a vácuo. E as alfaces do mercado eram tão mais robustas, os tomates inchados e uma das mexericas da gôndola davam três daquelas que tinham no pé de casa. O gosto é insosso, mas o importante é agradar os olhos com o volume.

Numa cidade como São Paulo, para o Joaquim se alimentar como eu me alimentava na minha infância no interior de Minas, com orgânicos e integrais, eu teria que ganhar na Mega-Sena. Produtos orgânicos custam até 600% mais caro que o similar industrial. E não dá pra pensar na possibilidade de agricultura doméstica: uma casa com quintal do tamanho da casa dos meus pais, aqui em São Paulo, dependendo do lugar, chega fácil aos sete dígitos.

A varanda do apartamento que moro hoje mal cabe três pessoas. E a ainda tivemos que colocar uma tela de proteção, por causa do bebê. Tela na minúscula varanda e em todas as janelas. A vista dá de frente para uma trinca de outros prédios. Quadrados, cinzas, todos iguais. Para o meu desespero, o síndico mandou um punhado de árvores pro chão no mês passado. Mas ainda ouço uns passarinhos cantar lá fora, nas poucas árvores que sobraram. Dia desses tive a impressão de ouvir um galo cantar. Já passava das seis e meia da manhã e eu fumava o primeiro cigarro do dia. Ouricei os ouvidos e os olhos flanaram no horizonte. Um avião passou. Sirenes ao longe. Carros de farol baixo e manobrando no estacionamento lá frente. Joguei o cigarro fora —  ainda parei por um tempo — compenetrado. E nada. Pura miragem. Delírio.


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Obs: Acho que vou migrar o blog pro Medium. Por enquanto, ainda vou postando aqui e lá.

10/10/2014

Por que não voto em Aécio?

Ou como a redução da maioridade penal vai otimizar o poder do sistema carcerário em transformar menores infratores em profissionais do crime 


http://www.malvados.com.br/
Andre Dahmer


Independente de quem vença no segundo turno, o grande estrago já foi feito. Não bastasse os assustadores 500 mil votos de Levy Fidélix (PRTB), cujo discurso homofóbico gerou revolta em grande parte da sociedade, o Congresso eleito este ano é o mais conservador desde 1964.


Houve aumento da bancada de religiosos, militares e ruralistas. Num cenário assim, é possível prever uma flexibilização da legislação ambiental, diminuição de políticas públicas a favor das minorias e maior criminalização e desemparo dos movimentos sociais. Além disso, pautas urgentes como a legalização do aborto, criminalização da homofobia e descriminalização das drogas devem se tornar inviáveis. 

E o mais preocupante: a redução da maioridade penal deve entrar nas discussões e pode vir a ser uma realidade. Daí meu motivo concreto para não votar no candidato do PSDB. 

Grandes vozes do partido tucano são a favor da redução para 16 anos. O Governador Geraldo Alckmin, o candidato Aécio Neves e seu vice, o ex-guerrilheiro Aloysio Nunes, já declaram publicamente o desejo de encarcerar menores infratores. 

Em 2013, quando um vídeo de um jovem morto em um latrocínio na porta de casa foi exaustivamente repetido nos telejornais e na internet, sensibilizando o público, uma pesquisa feita ao calor da hora revelou que 93% dos paulistanos era a favor do endurecimento do tratamento a menores. Diante deste contexto, os dois tucanos paulistas encaminharam um projeto ao Senado. A Comissão de Constituição e Justiça da casa rejeitou o projeto de lei do senador. No entender do colegiado, o projeto era inconstitucional e feria os direitos das crianças e dos adolescentes. Mas agora, com um congresso com esse perfil e a possibilidade do PSDB no executivo, a realidade é outra. 

Respeito muito os sentimentos das famílias que perderam alguém vítima de um crime envolvendo menores. O desejo de que alguma coisa seja feita – até mesmo um sentimento de vingança – é totalmente compreensível em casos assim. Desde que fique no fórum íntimo. A Lei não existe para promover a vingança e tampouco pode amparar-se na subjetividade, em um sentimento. Por maior que seja a dor. Isso porque vingança não resolve o problema da criminalidade. Pelo contrário. Pode aumentar. E uma legislação baseada em sentimentos levaria a sociedade à barbárie.

O fato é que mandar menores de 16 anos para o sistema carcerário brasileiro, da forma que ele está, é aumentar as chances desse jovem que cometeu um delito cair numa espiral de reincidência. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 70% dos egressos nos presídios voltam a cometer crimes. Ou seja, de cada dez criminosos, apenas três se recuperam – sete voltam a ilegalidade. 

No Estado de São Paulo, ao contrário do que diz o senso-comum, o menor infrator não fica impune. Ele é também privado da liberdade. É apreendido e encaminhado para a Fundação Casa. A diferença é que o índice de reincidência na Fundação Casa é de 13%. Ou seja, de cada dez menores que cumprem medidas socioeducativas – 8,7 se recuperam. Apenas 1,3 voltam a cometer delitos. 

Sistema Prisional: de cada 100 presos, 70 voltam a criminalidade. 

Fundação Casa: de cada 100 menores, apenas 13 são reincidentes. 

Ou seja, ao propor que menores infratores sejam mandados para o sistema prisional, Alckmin, Aécio e Aloysio Nunes, ao contrário de combater a criminalidade, estão na verdade aumentando o índice de bandidos nas ruas. 

Não há nenhuma racionalidade em reduzir a maioridade penal. E não dá para votar em um partido que defenda essa bandeira.

São necessárias propostas que reduzam a reincidência tanto nos presídios como nas fundações para menores. Além de propostas concretas para inibir o ingresso de jovens no mundo do crime. Mesmo nesse tocante, a visão desses senhores é tacanha: repressão policial. E mais nada. Não dá para colocar sujeitos assim à frente de um país.

***


Em tempo: Bruno Paes Manso, um dos melhores jornalista em atividade hoje no país, escreveu um artigo elucidador sobre a questão da maioridade penal. Não dá para ignorar esses dados:

“Foram pesquisados 3.233 casos de homicídios e latrocínios de 2005 ocorridos em São Paulo. Esse ano foi escolhido para que houvesse mais tempo para que os casos na justiça fossem dados como resolvidos. Os resultados são reveladores

- Do total, só 1,9% (69 casos) foram cometidos por adolescentes com menos de 18 anos de idade.

- No mesmo ano, 264 assassinatos (11%) foram de autoria de policiais militares.”

O artigo completo está aqui.


08/09/2014

Mulher de branco


Detalhe: “Alexandrina e sua Cidade”, de Carybé (1944),  (Foto: Divulgação)


Sábado passado fomos até o Tomie Ohtake ver Histórias Mestiças. Recomendo fortemente. Com a curadoria de Lilia Schwarcz, a exposição é ótima, reúne grandes obras, destas que a gente vê nos livros de histórias e literatura. O único problema é que não há nenhum lugar para sentar. É normal em exposições, mas não facilita a vida de casais com bebê de colo.

Com os joelhos frouxos, encontramos um minúsculo banco praticamente escondido sob as escadas, na saída do restaurante. Já tínhamos almoçado. Paramos antes num restaurante mineiro próximo de casa. Desfiei exaustivamente uma lasca suculenta de picanha para o Joaquim. E ele comeu todo o arroz e o purê de batata e o feijão e o angu que aqui eles fazem temperado. Era por isso que estava com sede e a Quel retirou o copinho da bolsa e começou a encher d’água. Havia pouca gente na exposição, o que me deixou intrigado. O acervo conta com obras de Adriana Varejão, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Portinari. Mas talvez ver esses troços ao vivo seja novidade apenas para mim, um caipira parcamente ilustrado.

Meus olhos flanavam ao longe, pensando em boletos, entrevistas de emprego e o maldito TCC. Logo aquele sábado terminaria e seria domingo já soterrado pela segunda. Essa ansiedade inevitável em aproveitar o fim de semana.

Surge uma família, saindo do restaurante. Um casal grisalho e um outro casal mais jovem, na faixa dos trinta e poucos. Eles avançam à frente naquele andar de leseira e bucho estufado, os dentes branquíssimos e as canelas brancas sob bermudas cáqui. Não olham para trás. No rastro vem uma senhora vestida de branco, cabelo crespo amarrado num coque e monitorando de perto os passos destoados de uma menina de pouco mais de um ano. 

Os dois casais à frente riem e conversam tão baixo que as bocas se movem em silêncio como peças publicitárias de banco sob efeito da tecla mute. A menina dá um giro e anda na direção contrária e fala alguma coisa. Apenas um dos homens olha para trás, de relance, mãos enfiadas nos bolsos, como quem olha um ônibus passar na rua. A mulher de branco tem um semblante alegre e cansado, as mangas arregaçadas, o suor lustrando a face. Está próxima o suficiente da criança para evitar um tombo. Pega a menina no colo e elas caminham na direção de uma vitrine. Elas conversam e riem e trocam beijos no rosto e se afastam cada vez mais da família, já no pé das escadas. O homem de bermuda olha para trás, como quem procura o cachorro fora da coleira. Faz um maneio de cabeça e começa a subir os degraus. A mulher de branco segue atrás. A menina mexe no cabelo da mulher e parece cantar. No alto da escada, o homem de bermuda espera, olhando de cima para baixo. Tira as mãos dos bolsos. Quando elas chegam ao topo, o homem estica os braços. Mas a menina se contorce, vira de costas, e se agarra à mulher de branco. Agarra. Chora. E balança os braços. O homem sorri. Enfia as mãos nos bolsos outra vez. E segue à diante.


09/08/2014

Primeira vez

Arquivo pessoal

Não sei com você, mas comigo é assim: o dia passa cada vez mais lento e os anos cada vez mais rápido. O relógio custa a girar até meio-dia, depois meia eternidade até o final do expediente. Mas ontem mesmo era janeiro e agora o calendário na geladeira me informa que estamos já entrando no fim da primeira quinzena de agosto. 

Tempo é um troço estranho.

Mas eu estava pensando essas coisas porque segunda já faz dez meses que meu filho nasceu. Parece que foi ontem que a Raquel e eu chegamos à maternidade, um tanto quanto amortecidos e anestesiados pelo nervoso. Ela participou de vários grupos, eu vi algumas palestras, pesquisamos muito a respeito do parto humanizado e visitamos uma meia dúzia de médicos e maternidades. Nosso desejo sempre foi fazer as coisas da melhor forma possível. Estávamos focados. E realmente tudo correu perfeitamente bem no parto, que foi natural, sem qualquer intervenção - até um pouco além das nossas expectativas. 


Claro que os dias na maternidade são um conto de fadas. A gente acha que o parto é o maior desafio e quando ele acaba parece que tá tudo resolvido. Ainda mais com refeição quentinha servida de três em três horas. Enfermeiras que trocam as fraldas do bebê e dão banho. Sem contar nas arrumadeiras que limpam tudo e só faltam nos servir cerveja com picanha. E a quantidade constrangedora de presentes chegando? Dá até vergonha, mas a gente acaba aceitando que é uma necessidade da nova família viver esses primeiros dias assim. É só curtição. Mas quando voltamos pra casa, são outros quinhentos. Descobrimos que o parto é só uma ínfima parte de todo processo. E nunca se está preparado para uma coisa como essa: éramos dois, agora somos três. Acompanhar o pré-natal e o parto e tentar se preparar para a paternidade é o mínimo a fazer. Só não evita o desespero em noites sem sono diante da exigência de uma dedicação integral. A logística das mamadeiras, das fraldas, do colo. E o mais duro é tentar reconstruir aos poucos aquela vida de casal de antes. Uma entrega que talvez você nunca tenha imaginado dispôr. Mas precisa ter. Como todas as grandes coisas que valem a pena nessa vida, essa disposição não tem fórmula. Tem que aprender por si mesmo.

***

Dia desses, o Joaquim ficava virado de costas como uma tartaruginha batendo as perninhas de ponta cabeça. Agora engatinha pra todo lado e já cai os primeiros tombos. Passa rápido. E a coisa que mais me surpreende é o modo como a relação entre pai e filho é construída e solidificada ao longo do tempo. Parece óbvio. Mas não é. Num primeiro momento, é pura emoção. E a prevalência de um instinto muito forte de proteção e acolhimento. À medida que os meses passam, o vínculo fica mais profundo e complexo. É natural que seja assim. Não existe amor a priori. Toda relação precisa de tempo para tecer conexões mais complexas, sedimentar as experiências compartilhadas. Precisa sobretudo de memórias em comum, de reconhecimento. E quanto maior a convivência, maior o vínculo. Isso vale para os dois lados.

Daí que o desafio da nossa geração é passar mais tempo com os filhos. Trabalhando o dia todo e depois encarando uma jornada noturna na faculdade, é difícil. E eu sou totalmente contra essa tendência de despejarem os filhos na casa dos avós de segunda a sexta, enquanto os pais fazem frila de pais aos finais de semana. Há casais que abandonam empregos ou mudam de ramo ou contratam babás ou colocam os miudinhos no berçário. É uma sinuca de bico. O que é o melhor? Não sei.

Domingo é meu primeiro dia dos pais e o tempo é a única coisa que me preocupa agora. Mas espero que faça sol e que meu time saia da lanterna. Espero que possamos todos sobreviver a esse bombardeio da publicidade infantil e não mergulhar nesse ciclo de consumismo precoce e ridículo. E também espero que os circos não acabem. E espero também ter muita paciência pra frequentar os aniversários de outras crianças cujos pais sem noção marcam as festas para às 18hs. Espero ser um bom pai, desses que encontram o equilíbrio entre a tolerância e a severidade. E também espero que amanhã o feijão da sogra não esteja salgado. E que tenham comprado uma caixa de cerveja extra.

Tudo bem ganhar três pares de meia.

04/08/2014

E um gosto de óleo no fundo da garganta


Arquivo pessoal


A mancha de sol desaparece atrás dos prédios e os postes e os carros já com as luzes acesas. O mormaço de centenas de motores em ponto morto e os carros buzinando e os motoqueiros também buzinando e subindo na calçada e acelerando avenida afora. “Como se todo mundo estivesse muito apertado pra ir ao banheiro”, alguém diz. O cheiro de borracha queimada e um gosto de óleo no fundo da garganta. Mesmo com as janelas abertas o ar é sufocante no ônibus. É tipo uma sala de espera. Nada acontece até um estrondo grave preencher tudo. Depois apenas o barulho de metal se partindo e se arrastando no asfalto. As pessoas gritam e a porta do ônibus se abre e eu tento escapar da multidão. É inútil. Vejo uma carreta cegonha caída e uma dezena desses carros em infinitos tons de cinzas prateados e retorcidos. Gigantescas bolas de papel alumínio. É difícil avançar. Há uma viatura da CET estacionada na calçada. No meio da pista e já embicado na contramão está o Chevrolet D60. Bege. Sem para-choques. Tombado de lado e com os pneus ainda girando no ar. Os braços de um homem surgem escalando a porta do passageiro. Ele fica em pé no caminhão tombado. A luz dos faróis cai sobre sua cabeça e os braços brilham como que cobertos por um verniz escuro. Há uma beleza perturbadora no rosto e cabelo ensanguentados e a camisa tingida de vermelho. Uma criança que tivesse brincado com tinta. Ele salta como se já tivesse feito aquilo infinitas vezes e dois homens correm para ajudá-lo. Eu fico muito contrariado com aquilo tudo. O homem me parece familiar, o caminhão também, mas ainda não sei quem é. Penso em dar meia volta e olhar a placa do caminhão, mas o movimento da multidão é unilateral. Os caras do SAMU pedem pra todo mundo se afastar e um cara do meu lado me pega pelo braço e balança a cabeça. “Vão sacrificar os cavalos”, diz. Não compreendo a frase até ver os animais caídos. Seis ou sete, aos espasmos, movendo os joelhos e as pernas em ângulos que lembram aranhas. Os olhos dos bichos brilham arregalados e negros e o sangue vaza das ventas, num sopro ofegante, como se tentassem refugar o inexorável. Acendo um cigarro. Acontece de tudo nesse cidade. Há muitas pessoas na rua e elas caminham em duplas e trios e cochichando coisas que não consigo entender. Não há buzinas e o barulho dos motores e as luzes ao longe são entidades imateriais. À medida que me afasto uma camionete estaciona próximo dos bichos. Dois homens descem e batem as portas e sem pressa mexem na carroceria e conversam e riem. Fuçam debaixo de uma lona preta e riem e conversam e apontam para os animais. A última coisa que eu vejo é o brilho da lâmina de um machado. Só aí eu acordo.

24/07/2014

Fotopintura




Hoje voltando de ônibus me lembrei de uma notícia que li algum tempo atrás. Um senhor de oitenta e seis anos que cometeu suicídio, saltando da janela do seu apartamento. Não lembro da cidade ou do ano, ou do andar, mas lembro que fiquei um tanto quanto impressionado.

Em tese, além dos oitenta e tanto anos não há muito o que se esperar. Já se enterrou o pai, mãe, meia dúzia de amigos, o amor, sete gerações de gatos e quem sabe um ou dois filhos. O mundo que você nasceu, cresceu e envelheceu não existe mais. O pior já passou. 

E a despeito do corpo que apodrece, do abandono dos parentes, da catarata e da osteoporose, das reprises de novelas e programas de humor no meio da tarde, você não está preso a nada. Tanto faz: livre. Daí que é meio chocante um sujeito saltar de uma janela já no crepúsculo da vida.

Não é preciso viver oitenta e tanto anos pra perceber que os dias nos tornam mais duros. Não falo de experiência, apenas de aridez. Essa é a verdadeira serenidade. Esse músculo no peito fecha-se num único calo.

***

A minha avó arranjou um namorado depois do sessenta. Já estava viúva há trinta anos. Namorava escondido dos filhos, dos netos. E até da fotopintura do meu avô no meio da sala. Quando o namorado chegava, ele jogava um pano por cima do retrato.

O namorado era um sujeito do século passado, com calça de brim e um chapéu miúdo na cabeça, uns vinte anos mais novo. Lembro dele caminhando numa toada mansa, com roupas escuras num solzão de estalar mamona. Exalava um odor de guarda-roupas trancado e tinha muita dificuldade pra entender qualquer coisa que não fosse explicada aos berros. Era um bom sujeito. 

O namoro durou quinze anos, um romance moderno, em casas separadas. 

Segundo consta nas fofocas da família, o homem dormia por lá toda madrugada. E escapava na surdina, antes que o sol apontasse. Apesar do espírito adolescente, era uma pessoa de bem. Queria casar e até visitou meus tios, escondido, pediu permissão, consentimento. 

Queria tudo às claras. Regularizar-se junto à família

Mas minha avó começou a reparar que o colchão do lado onde o namorado dormia estava começando a afundar. Ao invés de trocar o colchão, terminou o namoro. O sujeito ficou inconsolável. Abandonado assim, de um dia pra outro, por nada. Sumiu por um tempo e depois só lembro de vê-lo anos depois no dia do enterro. Soluçando, em silêncio. 

Meu avô deve ter ficado feliz. Nunca mais precisou dormir debaixo do pano.


23/07/2014

Dedo de prosa


Amigos, troquei um dedo de prosa com a querida escritora e jornalista Moema Vilela, sobre o Quebranto. Falei um pouco das minhas influências e do processo criativo em geral. E também sobre a questão do interior na minha ficção.

É só clicar aqui.

Até.

11/06/2014

interior



O ano é 2010. O Brasil era um dos favorito pra Copa com o tal do Luis Fabiano e do Felipe Melo e eu desembarco em Porto Alegre em março com uma mala cheia de roupas e sem pijama. Tinha quinhentos reais trocados em notas de vinte, um esqueiro bic amarelo e um maço de Luxor amaçado e um pedaço de papel dobrado com o endereço de um boliviano que vivia em Canoas e iria me hospedar por uns tempos ao valor de cento e vinte reais por semana. Tudo ótimo. Estava tão empolgado que tomei um porre monumental no Parangolé e cheguei trocando as pernas e perdi a chave da casa do sujeito.

Nem precisei pagar a primeira semana.

Encontrei a chave, mas não conhecia ninguém na cidade. Passei a segunda noite num hotel no centro com clima de Linha Direta e enredo de música do Odair José até que encontrei uma pensão de família num apartamento sublocado onde moravam um músico gaúcho e um vendedor de creme de cabelo de cinquenta anos e um jovem advogado catarinense que estudava o dia todo pra um concurso de promotor. Não sei o que aconteceu com eles. Logo me mudei pra uma república na Lucas de Oliveira com a colega de curso que depois virou amiga e que fazia tapioca com salada quase todo dia e gostava de Alice Munro. 

Ela é jornalista e tinha abandonado um emprego no Mato Grosso e a gente estava na cidade pra fazer a oficina de contos da PUCRS. Ela gostava do meu feijão mas quase nunca bebia o meu café ou uma dose sequer das garrafas de Ypioca limão que eu comprava na sexta-feira. O Luís também aparecia sempre pra discutir uns textos e beber umas cervejas e colocar alecrim nas batatas assadas no forno. Nunca li e escrevi tanto na minha vida. E foi nessa época que eu comecei a esboçar os primeiros contos que compõem Quebranto.

***

Eu li o Luiz Vilela pela primeira vez há mais ou menos uns dez anos. O impacto foi forte. Lembro que pensei algo mais ou menos assim: “Eu conheço essas pessoas”. Até então acostumado a ler apenas literatura estrangeira, entre romances policiais e clássicos, era a primeira vez que encontrava personagens tão nítidos e vívidos que se confundiam com as pessoas que eu encontrava no cotidiano. O impacto foi semelhante quando li Amilcar Bettega, Carver e depois Alice Munro. Dentro do gênero conto, são os que mais gosto no momento.

***

O título inicial do livro era Interior despedaçado. Os contos que eu vinha escrevendo ao longo do ano de 2011, 2012 e 2013 tratavam do mesmo ambiente e temas. Passei praticamente toda a minha vida no interior. É impossível que não haja influência. A ideia sempre foi explorar essas paisagens e personagens sem cair num discurso regionalista, provinciano e bairrista.

Mudei o título porque Quebranto é a palavra que melhor dialoga com a paisagem destes contos. Tanto no aspecto do interior geográfico como do interior psicológico.

Espero que gostem.

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Para comprar o livro basta clicar nos links abaixo. Exclusivo em e-book. Se você não tem um leitor digital, fique tranquilo. Dá pra ler no celular, no tablet e também no PC. Você escolhe. É só baixar o aplicativo na loja de sua preferência.

03/05/2014

Nebraska


Woody Grant (Bruce Dern) é um velho alcóolatra e cabeça dura que acredita ter ganho US$ 1 milhão de dólares. Embora seja motivo de piada na família, ele insiste em deixar sua casa em Billings, Montana, para ir buscar o dinheiro em Lincoln, Nebraska. Incapaz de dissuadir o pai, David (Will Forte) acaba levando-o na viagem. Pai e filho vivem uma relação distante e apagada e essa jornada por paisagens desoladas e vazias serve como uma espécie de acerto de contas - entre os dois - e cada um com a própria consciência.

A teimosia de Woody lembra um pouco o velho Alfred de As Correções, do Franzen.



Mas além do drama familiar, o filme traz como pano de fundo uma América devastada pela crise, com jovens sem perspectiva e velhos decadentes prostrados diante da televisão. Um EUA à procura de um pote de ouro no fim do arco-íris, desconectado e saudoso dos velhos tempos. 

Com uma fotografia preto e branco, planos abertos e cheios de vazio, o diretor Alexander Payne fez um dos melhores filmes de 2013. Um excelente road movie, que me fez lembrar do também excelente The Straight Story, de David Lynch.

28/04/2014

Dança das mãos


Arm in Arm (A Collection of Connections, Endless Tales, Reiterations, and other Echolalia)
by Remy Charlip, Parents' Magazine Press, 1969 


Subjetividade é apenas um nome laico para a alma.

Quando as pessoas estão falando de subjetividade estão na verdade falando de uma alma imanente e perecível. Uma dimensão etérea com prazo de validade curto. O que existe de fato são centenas de bilhões de conexões neurais que organizam o cheiro e o sabor e o calor e o frio e as decepções e as milhares de imagens captadas pela retina e também a tabuada que você nunca decorou. Uma monstruosidade de impressões somadas a um universo ainda maior de memórias aleatórias e melhoradas a nosso bel-prazer através do tempo. Tudo isso acontecendo simultaneamente é o que nos ensinam a chamar de self

Elucubrações bestas. Bobagens.

À medida que vejo meu filho crescer essas noções mal ajambradas desaparecem completamente.

Ele fica sozinho no quarto olhando os galhos da árvore balançar lá fora. Eu fico na porta do quarto olhando e tentando imaginar se aos seis meses de idade ela já sabe que está aqui e que há um mundo além daquela janela. Um mundo onde homens de cinquenta anos ouvem boleros em espanhol no ar condicionado do Citroen prateado parados no trânsito e praguejando contra as faixas de ônibus. Fico imaginando se meu filho já tem consciência da extensão do próprio corpo. Se sabe que a mão que ele leva sempre à boca é também ele ou aceita de bom grado a companhia desse outro ser misterioso e amigável. Fico imaginando se já produz divagações no nível mais primário: prazer, fome e sono. 

Às vezes ele murmura à noite como se sonhasse. 

Nessa tenra idade, não dá para usar a própria experiência como material de análise. Na primeira lembrança que tenho da minha própria vida eu já andava e falava. E talvez seja isso: a memória – acessível – só passa a existir a partir da linguagem abstrata. É a linguagem simbólica que organiza e orienta nossa experiência no mundo.

Uma amiga psicóloga me disse uma vez que mesmo as sensações mais concretas como fome ou frio acontecem fora da subjetividade da criança. Achei a observação sensacional. A fome seria como um trovão distante, ela disse. Uma coisa que vem e vai embora totalmente além do seu controle. Como uma tempestade.

Dia desses, entrei no quarto ele estava na cama sozinho. Olhava o vento balançar os galhos da árvore. Eu o chamei por duas vezes. Sempre que eu o chamo ele logo me olha de volta e sorri. Mas desta vez não foi assim. Continuou como estava, contemplando a árvore balançar. Eu o chamei outra vez e mais outra. E nada. Olhos fixos nas folhas, o vento empurrando os galhos, como que se divagasse sobre o céu e a terra.

Uma das brincadeiras que ele mais gosta é a dança das mãos. Quem inventou o nome foi a Quel, mas deve ser um hábito universal. Trata-se basicamente de ficar mexendo as mãos e cantarolando músicas inexistentes diante dos olhos do seu filho enquanto ele ri e mexe os bracinhos desesperadamente feito uma tartaruga de bruços. 

A dança das mãos requer uma resistência grande dos pais. Pais com LER (Lesão por Esforço Repetitivo), devem praticar com moderação. Crianças nessa idade estão na fase no eterno retorno. Exigem uma disposição infinita dos pais para a repetição e criatividade nas coreografias e alternância de ritmos. Ainda não encontrei cursos sobre a dança das mãos.

A solução é fazer pequenas pausas durante o procedimento. E é isso que eu faço. 

Hoje, durante uma dessas pausas, aconteceu uma coisa que me deixou espantado. Meu filho ergueu as mãos e começou a mexer os dedos na frente dos olhos. Eu fiquei de lado, só olhando. Ele mexia os dedos de modo desajeitado, todos de uma vez. Tinha o cenho franzido e olhava para mão direita e depois para a esquerda. Mexia os dedos, virava as costas da mão, virava o corpo de lado e voltava na mesma posição. Eram uns movimentos tímidos e rústicos e sem pressa. Um movimento de exploração e reconhecimento. Eu fiquei ali deitado. Sei lá por quanto tempo. Olhando aqueles dedinhos miúdos dançar e dançar.

23/04/2014

Histórias de amor para se ver no escuro



É provável que Her (Spike Jonze, 2013), filme que levou a estatueta de melhor roteiro original no Oscar, transforme-se numa daquelas obras clássicas usadas por jovens professores universitários como ferramenta pedagógica para discutir o vazio das relações humanas nas grandes metrópoles contemporâneas num mundo cada vez mais conectado. Paciência. Nada pode ser feito a esse respeito. Porque é claro que essa pequena obra prima vai muito além de qualquer papagaiasse filosófica e discussões sobre solipsismo. O amor vivido por Theodore (Joaquin Phoenix) e Samantha, um sistema operacional que simula a consciência humana, soa genuíno. O amor puro, para além do corpo. Uma fantasia irrealizável e absurda. Como qualquer história de amor.

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Muito se falou sobre a questão homoafetiva em La vie d'Adèle (Abdellatif Kechiche, 2013), filme vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2013. É provável que se transforme num clássico do gênero. Mas o filme vai além. É curioso como ao longo do romance a incompatibilidade de personalidades e interesses entre o casal vai minando a relação. Desde aquela conversa sobre Bob Marley e Sartre, ou dos jantares nas casas dos pais, já estava anunciado a impossibilidade de ir em frente. O amor transcende o corpo – mas é incapaz de resistir a perspectivas de mundo inconciliáveis.

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Hoje eu quero voltar sozinho (Daniel Ribeiro, 2014) é um desses casos de filme brasileiro que merece ser celebrado e incensado. Há um cuidado especial com a fotografia, com a trilha. E o desenvolvimento das personagens é digno de um diretor experiente. Nada daquele tom pasteurizado Globo filmes e longas com clima de telenovela. O roteiro de Daniel Ribeiro mergulha no universo de nostalgia e confusão que é a adolescência. O protagonista é um garoto cego envolvido em um triângulo amoroso e que se descobre homossexual ou bissexual. Mas não há vitimização. A abordagem é otimista, como são otimistas as perspectivas de um adolescente em relação ao mundo e ao amor.

16/04/2014

A hora e a vez do conto?


Ao comparar a literatura com uma luta boxe, o escritor argentino Júlio Cortázar cunhou a célebre definição: “o romance ganha sempre por pontos, enquanto o conto deve ganhar por nocaute”. 


Hemingway, contista e boxeador, praticava os dois tipos de nocaute

Embora seja idolatrado por escritores, o conto sempre ocupou um lugar marginalizado no mercado. Basta lembrar a declaração de Luciana Villas-Boas, uma das personalidades mais influentes do meio editorial brasileiro, em uma matéria da revista da Cultura, em 2010: 

“Considero um equívoco começar a carreira com livros de contos, ou poesia, ou crônica. Esses gêneros não têm público e os livreiros começam a associar o nome do autor a fracasso de vendas".

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Quando surgiram os primeiros blogs – e os escritores começaram a escrever e publicar na internet – houve quem dissesse que as narrativas curtas iriam jogar os romances para escanteio. Livros como Guerra e Paz e Crime e Castigo, por conta do número monstruoso de páginas - em tese - seriam inviáveis em uma época frenética como a nossa, onde pais viciados em trabalho e em rede sociais mal tem tempo para ver os filhos crescerem. 

As previsões eram que a produção literária iria se restringir as narrativas curtas. "Sua brevidade estaria mais alinhada ao paradigma do conteúdo digital, que favorecia cada vez mais a fragmentação, a velocidade de leitura e a incorporação de recursos multimídia", escreve Daniel Galera, um dos autores que esteve na vanguarda da publicação independente nos primórdios da internet, em sua coluna no jornal O Globo. "A história foi um pouco diferente. A nova literatura breve baseada em hipertexto nunca se concretizou". 

Com a chegada da gigante Amazon ao mercado brasileiro, forçando as editoras locais a investirem em e-books, as velhas previsões voltaram. A relativa popularização do eReader, o barateamento sistemático de tablets e os aplicativos de leitura para celulares aqueceram o mercado digital brasileiro, abrindo espaço para novos projetos.




Formas Breves

O selo digital Formas Breves, sob a coordenação de Carlos Henrique Schroeder, é uma dessas iniciativas inovadoras. Desde fevereiro, a coleção, que faz parte da plataforma e-galáxia, vem publicando um novo conto a cada semana. E pela bagatela de R$ 1,99. O único critério de seleção dos textos é a qualidade, segundo o editor. Entre os autores convocados por Schroeder, que é também editor da Revista Pessoa, estão novas vozes da Literatura Brasileira, como André de Leones e o José Luiz Passos, vencedor do Prêmio Portugal Telecom de Literatura. Há também previsão da tradução de textos de autores estrangeiros, inéditos em português.

“Por sete vezes chegamos no Top 10 de vendas da loja da Apple, na frente de best-seller's melosos, isso foi demais”, comemora o catarinense de 44 anos, que se surpreendeu com o sucesso imediato da coleção. “Isso nos motiva muito, e eu, o Tiago e a Mika, estamos cada vez mais empolgados e encantados com o projeto”, explica.

Ao falar da boa recepção da coleção, Schroeder ressalta o papel dos escritores que, segundo ele, levantaram a bandeira do projeto e ajudaram a propagar a publicação nas redes sociais. “O mérito é dos autores, pelos bons textos e pela batalha na divulgação”, afirma.

Segundo Schroeder, a premiação da canadense Alice Munro, em 2013, primeira contista a ganhar o Nobel, é uma vitória simbólica e pode abrir mais espaço para o gênero no Brasil. Nos EUA, autores como Lydia Davis e George Saunders, que se dedicam ao conto, ocupam lugar de destaque na imprensa e no mercado em geral. Algo que não acontece no Brasil, embora tenhamos grandes autores.

“Somos um país de grandes contistas, mas que vive a ilusão do romance”, diz.

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*Texto escrito para a disciplina jornalismo cultural. 

31/03/2014

True Detective: entre o niilismo e a esperança




Rust Cohle – a figura interpretada de forma brilhante por Matthew McConaughey em True Detective – é, no fundo, um sujeito esperançoso. Mesmo que tenham chovido comentários estabelecendo a relação com o pessimismo de Cioran ou Schopenhauer – a coisa não é por aí. As falas da personagem ao longo da série, como a já célebre e clássica cena do carro, podem até sugerir desesperança, mas as ações e trajetória de Rust nos mostram um homem em busca de um consolo. E que tem esperanças de encontrá-lo. 

É um sujeito que foi castigado – sem razão – e ainda tem senso de justiça. Resiste ainda em sua integridade, como Jó. Nesse sentido, há uma certa religiosidade trágica nessa primeira temporada da história criada por Nic Pizzolatto.

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Produtor/roteirista Nic Pizzolatto e o ator Matthew McConaughey,
Photo by Frederick M. Brown


"Eu não gostaria que qualquer telespectador entendesse que estamos propondo uma agenda niilista, ou reduzisse Cohle a um anti-natalista niilista. Cohle é mais complicado do que isso. (...) Ele é muito apaixonado, também muito sensível, se preocupa demais para ser rotulado como um simples niilista. (...) Quando Cohle fala do indizível, não é com a mesma perspectiva ilusória com que Hart fala sobre a importância de ter regras e limites?". 

Nic Pizzolatto, roteirista e criador da série, em entrevista ao blog Speakeasy. 

Algumas referências citadas por Nic Pizzolatto: Cioran, Poe, Thomas Ligotti, Laird Barron, John Langan, Simon Strantzas, Robert W. Chambers.

Só conheço Cioran e Poe. Dos outros, nunca ouvi falar.

Pelo sucesso repentino da série, a Intrínseca está preparando uma tradução inédita de O Rei Amarelo de Robert W. Chambers.

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Mas eu falava do Rust. Que é um cara com o coração cheio de esperança. Isso fica claro não apenas pelo diálogo final, quando relata uma espécie de encontro – ou desejo ou esperança de – com a sua filha morta. Não apenas pela metáfora com o céu. Ao longo da série ele acorda de manhã, vai trabalhar, passa anos investigando um caso sozinho. Não parece a postura de um pessimista. Claro que uma análise psicológica mais rasteira pode dizer que esse estado obsessivo é uma tentativa de suprir a carência da filha. Mas aí estamos no nível dos desvios comportamentais. E desvios de comportamento nada têm haver com pessimismo ou niilismo.

Se comparamos Rust com o professor de peça The Sunset Limited, de Cormac McCarthy, por exemplo, fica claro que o detetive mais querido do momento é um sujeito até simpático. Rust é um sujeito que, incapaz de contemplar o vazio, a dor e a indiferença do mundo tal e qual, ao invés de saltar na linha do trem – salta no Absurdo. É um homem que acredita em um mundo melhor. É preciso imaginar Rust feliz.

27/03/2014

Llewyn Davis e a celebração do fracasso


Mesmo saindo vencedor do Grand Prix em Cannes no ano passado, não é provável que se vejam filas nas salas de cinema para apreciar o novo filme dos Irmãos Coen. Inside Llewyn DavisA balada de um homem comum não traz muitas recompensas ao espectador médio, acostumado com enredos pedagógicos e histórias edificantes. Mas com certeza o filme é um alento para os fãs dos diretores Joel e Ethan Coen e deve agradar também os espectadores menos afoitos.

Álbum de Van Ronk, um dos artista que inspirou o roteiro

Llewyn Davis (Oscar Isaac) é um músico folk sem dinheiro nenhum e que tenta reconstruir sua carreira após a morte do seu parceiro. Ele mal tem onde dormir e passa as noites saltando de sofá em sofá, contando com a boa vontade de amigos e conhecidos. A história poderia ser a de Bob Dylan ou de muitos outros músicos que vagavam por Nova York nos 60 em busca de sucesso, matando um leão por dia e sem nenhuma perspectiva de futuro. A diferença é que Llewyn Davis é um desses músicos que ficaram pelo caminho, atropelado por pelo próprio azar ou pela falta de sorte.

Na primeira cena já dá para saber do que se trata. O inverno castiga a cidade e Llewyn toca em um pequeno bar para um público modesto. Depois do show, ele recebe o recado que um o homem o está esperando nos fundos. Poderia ser uma proposta de gravação ou oferta de um novo show, mas não é. Llewyn é espancado e fica caído, sozinho, sem ninguém para ajudá-lo. Está aí a síntese do filme.

Os Irmãos Coen já têm algumas estatuetas na carreira, pelo roteiro original de Fargo (1996) e pela adaptação de romance de Cormac Mccarthy, No Country for Old Men (2007). Inside Llewyn Davis foi indicado a dois prêmios técnicos no Oscar desse ano: fotografia e mixagem de som. O som é de uma nitidez impecável durante todo o filme e atinge níveis espetaculares na cena em que Davis participa da gravação de um single com Jim (Justin Timberlake). Dá para ouvir com clareza os arranjos instrumentais e os nuances das vocalizações que tornam a passagem hilária.

O albúm de Dylan já havia servido de inspiração para uma cena de Vanilla Sky.

A fotografia, por sua vez, é de encher os olhos. Ela foi inspirada na capa do álbum The Freewheelin' Bob Dylan, o segundo álbum de estúdio do cantor. Na capa, Dylan e sua namorada a época, Suze Rotolo, caminham por Greenwich Village, e se abraçam para aplacar o inverno de Nova York. A capa do disco de Dylan serviu de inspiração para o diretor Bruno Delbonne. Inside Llewyn Davis foi derrotado nas duas categorias pelo didático Gravidade

A grande inspiração dos Irmão Coen para o roteiro foi o músico Dave Van Ronk, que morreu de câncer em 2002, aos 65 anos. Ele é considerado um mentor entre artistas daquela época. É citado como referência para astros como Joan Baez, Joni Mitchell e o próprio Dylan.

Há mais ou menos uma década, vagava pelo e-Mule uma animação não oficial para Pipe Dreams, do Travis. Brincávamos que a vida do coelhinho do desenho era o grande pesadelo em vida. Llewyn Davis é quase isso. A desconstrução de um sonho. A celebração do fracasso. 

01/01/2014

Divisa




Saiu um conto meu no Jornal Opção. É uma breve história ambientada no interior do Brasil escravocrata, em alguma paisagem perdida do Séc. XIX. Quem quiser conferir a parada é só clicar aqui.