O siso estava fraturado e
latejando e a dor se espalhava pela fileira de dentes. Não dava pra saber de
onde vinha. Doses cavalares de analgésicos e anti-inflamatórios não faziam mais
efeito. Às vezes vinha uma onda aguda como se uma agulha incandescente
transpassasse o dente até o osso. Vai ter que extrair, disse o doutor. Eu disse
que tudo bem. Duzentos e oitenta, ele disse. Depois completou: Até duas
vezes, se quiser. Sem problemas, eu disse. Tomei um comprimido e depois me
sentei na sala de espera. Ia demorar pelo menos uns vinte minutos pra realizar
a extração. Tinha uma fonte d’água borbulhando embaixo da escada, logo atrás da
mesa da secretária. Eu me levantei e fui dar uma olhada. Não tinha mais nada pra
fazer. O poço artificial era bem realista. Revestido de pedras escuras e com
plantas espalhadas de um lado a outro. E as carpas amarelas nadando de um lado
a outro. A imagem bruxuleante de rabos serpenteando vermelhos e as bocas num abre e fecha igual velhos banguelas mascando a própria língua.
***
O ônibus cruzou a Av. Santa
Catarina e entrou na Alba. Era um desses dias secos e quentes em que a camisa
gruda feito lesma nas costas e o Sistema Cantareira cai dois pontos e você não aguenta mais engolir saliva na inútil
expectativa de dar um jeito na boca seca. Lá fora o céu oferecia um azul
embaçado e pálido. Nenhuma nuvem. Era sexta-feira. A gente tinha pensado
e descer pro litoral, mas eu precisava entregar um trabalho. E também já tinha
usado todas as faltas daquela matéria. Na sexta-feira as ruas sempre ficam cheias
de churrasqueiras e homens com latinha de cerveja e fumando cigarros desses
maços de nomes indecifráveis. Alguns de uniforme e outros nos trajes mais
neutros. Nalgumas vezes aparece um chapéu, sem qualquer retórica de modismo, uma
noção de elegância que não existe mais. O fato é que bem no pé do morro um córrego negro segue seu rumo, a despeito do lixo brotando de todos os lados. E então
vem aquele cheiro de esgoto e o cheiro suculento de carne fresca na brasa. Tudo
ao mesmo tempo. É difícil saber o que sentir. Mas num desses corredores, onde
ainda despencam cartazes de políticos da eleição municipal de 2012, misturados
com as eleições deste ano, crianças correm livres. Na rua. Ao redor de carcaças
de carros e motos. Descalças. Sem camisa. E ao longo do morro, depois da ponte,
mulheres sentadas no passeio, com cadeiras na porta de casa. Janelas abertas,
portas arreganhadas. Nada de grades. E bebês de colo engatinhado na calçada. A liberdade de um parque dinamarquês ou de cidade de interior.
***
Num farol antes da avenida que dá
para o metrô, há uma oficina de eletrônicos. TV’s de tubo, Microsystem CEE e
até um toca-discos. Comfortably Numb está
tocando tão alto que abafa o barulho do motor do ônibus e os ruídos da cidade. Dois homens
conversam aos gritos e rindo e cada um com uma latinha de Antarctica na mão. As
telas atrás deles estão todas sem vida. Os homens parecem companheiros de longa data, como toda dupla de bêbados. Parecem estar naquele ponto da conversa
onde se alcança algum tipo de grande iluminação sobre um fato mais ou
menos obscuro da vida: nostalgia, morte, amor, a extinção das fitas K7.
Mas a gente sabe como isso termina.
Nem eu.
Mas a gente sabe como isso termina.
E sexta, hein, Roberto?, diz um deles, quando se encontram na segunda.
O outro ainda se esforça, mas sabe que é inevitável: Não lembro de nada.
Nem eu.