30/05/2011

Relógio de Pulso e Contos de mentira

Dois livros que estão nas minhas prioridades em adquirir:

Relógio de Pulso, da Ana Guadalupe, pela editora 7 Letras. Relógio de pulso será lançado na terça-feira, 31 de maio, a partir das 19h, na Livraria da Travessa Leblon.



Contos de Mentira, da Luisa Geisler, pela editora Record. A Luisa venceu o Prêmio Sesc de Literatura 2010, na categoria contos. Contos de Mentira será lançado dia 13/07.



27/05/2011

Email a um amigo

Mário, teu email chegou numa boa hora. 

Tenho pensado muito nisso também, nesse distanciamento dos amigos. Tenho pensado que muitas vezes  eu tenho o hábito de preservar relações de amor (até exageradamente) e acabo sendo desleixado com os amigos, talvez por crer que eles vão estar sempre ali, disponíveis, do mesmo jeito, intocáveis, usando as mesmas roupas, as mesmas piadas e histórias. Pegar o violão e tocar a mesma sequência de cifras. Porque tenho essa intuição de que a amizade cristalizada nunca se modifica, passe o tempo que passar. Quando se encontra um velho amigo, embora haja uma estranheza inicial, basta evocar um primeiro evento marcante (ou banal), e tudo é reconhecimento.

É mais fácil se livrar de um grande amor que à época parecia inesquecível, do que se livrar dos laços de uma amizade, (se bem que, contrariando o Paulo Mendes Campos, amor não acaba. Se acabou não era amor, era amor de ocasião, gerado sabe-se lá porque, incapaz de se renovar. Sou mais aquele poema do Carver, do corte de cabelo. E haja cachaça quando ocorre assimetria). Amizade, por sua vez, é alguma coisa de campo de batalha. Nunca estive num campo de batalha, é claro, mas acho que é isso. Depois de passar por certos momentos juntos, vivenciar certas experiências juntos, cria-se um repertório existencial que nunca se quebra (isso vale pra qualquer nível de relacionamento humano, eu acho), um vínculo necessário que se estende e nunca mais arrebenta, principalmente se for apenas pela distância contigencial, só pela falta de convivência no dia a dia. Porque, aliás, o dia a dia é meio raçado com as obrigações e a seriedade, e nessa rotina de obrigações e dos cumprimentos sérios, ou dos risos treinados, surgem os amigos de ocasião, que não deixam de ter seu valor, mas eles acabam ocupando um espaço que é daqueles que não podem estar perto, seja qual for o motivo. Não como um reserva ocupa o lugar de um titular machucado, deixando o treinador de cabeça quente, amigos de ocasião são meio como reservas de luxo, com quem sempre podemos contar. E é comum a gente sempre dizer a esse amigo de ocasião: "Mas você parece demais com um amigão meu, nossa senhora. Você tem que conhecer esse meu amigo."

Essa distância, os rumos que a vida vai tomando com o passar dos anos, acabam gerando esses desencontros, esse distanciamento da rotina um do outro. Bons tempos aqueles que nos enfiávamos na roça como se não houvesse amanhã, e talvez não houvesse mesmo, e talvez nunca haja, além dessa crença (ilusória, porém necessária) de um amanhã nos esperando como um lugar no espaço, como um endereço exato. E é aqui, acho, que está o nó da questão. Esse endereço no amanhã, é quase sempre individual, cada um acaba embicando o rosto no próprio rumo e segue em frente. Sabe que se não fizer isso, ninguém, nem o melhor dos amigos ou familiares irá fazer. Não dá pra transferir a carga da vida. Ou como diz o povo da nossa terra, "cada um leva sua própria cruz".

Mas esses nossos endereços acabam se atravessando, sempre, numa esquina por aí. Principalmente, se a gente fizer um esforço, tomar a iniciativa de marcar alguma coisa. 

Afina o violão e chama o Dedé.

Um grande abraço.

25/05/2011

de quando buscava água com meu pai


INCREDIBILIS a creative blog by Enrico M. painter/designer


Faltava água na cidade, sempre, mas não me lembro a causa. Apenas das torneiras secas. 

A prefeitura emitia um aviso, ia faltar água por três ou quatro dias, e a caixa sobre o banheiro se silenciava. Como se obedecesse a decretos, as torneiras giravam em vão, a mangueira ressequida, esturricando no sol.

Não sei o motivo da falta d'água, porque tinha as pernas miúdas, os braços miúdos que não aguentavam carregar uma lata maior. A lata maior era meu pai quem levava, num carrinho de mão cinza escuro, o eixo mal lubrificado, que descia a ladeira da Igreja Velha, rangendo. 

Eu ia sentado na ponta do carrinho, com uma leiteirinha amassada nas bordas, apertada no colo. Lembro da imagem da estrada de cascalho à frente descendo e subindo, e quando às vezes meu pai acelerava, eu imaginava um tombo, meus joelhos esfolando no cascalho, sangue cheio de caquinhos de pedra, pontudos, grudados na pele, então apertava a borda do carrinho de mão com força, com medo. Até fechava os olhos, com medo, e não falava. Continuava quieto, apertando, segurando. Meu pai diminuía a toada e eu podia soltar as mãos, e o barulho do carrinho de mão avançando, agora lento, na estrada, o barulho dos chilenos do meu pai arrastando no cascalho, lentos, o barulho oco da lata maior rebatendo contra o metal do carrinho, me aliviava. 

Então eu podia reparar nas ranhuras da estrada. Marcas de pneus de caminhão, ferraduras de cavalos, carros, manadas de gado. E era como se as marcas trouxessem aqueles que as provocaram a presença. Como se a estrada, então vazia, fosse, aos poucos, povoada com as vacas se desviando do caminhão fumacento, e os cavalos em trotes imponentes se desviando das vacas, dos carros acelerando morro acima. 

Na curva perto do Matadouro, já dava pra ver a fila. Essa imagem real das pessoas próximas a bica soterrava meus devaneios, devaneios inspirados pelas ranhuras na estrada. Meu pai e eu assumíamos nosso lugar, esperando que a fila avançasse, para que pudéssemos encher nossas latas e tomar o caminho de volta. 

Mas meu desejo de que a fila avançasse não era tanto da água, jorrando infinita da bica, da água que ia servir para minha mãe cozinhar, para matar minha sede depois de uma partida de futebol à frente de casa. 

Eu queria mesmo era sentar na ponta do carrinho de mão - subir a ladeira de volta - e reparar as ranhuras na estrada.

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24/05/2011

Chegar na média

IINCREDIBILIS a creative blog by Enrico M.

Aquele que diz: “quem corre atrás, sabe como é, não cresce o olho no que é do outro”, está no mesmo barco daquele que diz: “você tem todos os dentes na boca, fala direitinho, como pode torcer para o Corinthians?”. E quem diz isso está com um pé, ou dois, não se engane, no mesmo barco preconceituoso daquele que diz “gente diferenciada” e paga 30 contos no ingresso do Politicamente incorreto, financiando o preconceito e dando risada de barriga cheia, no ar condicionado, depois mandando a polícia descer o pau, em cidadãos desarmados, numa manifestação pacífica e democrática. 


Esse mesmo sujeito de classe média é inoperante. Como quem solta um pum retórico as escondidas pra espantar pernilongos, torce, de longe, no conforto das suas grades, pela obrigação de enfiar os filhos dos políticos nas escolas públicas; e não faz absolutamente nada de concreto. Muitas vezes vota nulo (!). E raramente esse sujeito estudou numa escola pública, e muito menos colocaria os próprios filhos numa escola pública, ou abandonaria seu empreguinho na fundação não sei o quê, talvez financiada por um banco (!) ou pela renúncia fiscal de uma multinacional qualquer, pra se entrincheirar na sala de aula de uma escola pública. 


O problema é que a classe média privilegiada inchou tanto, que quando usamos a própria expressão privilegiada, logo vem as pedradas. Hipócrita, arcaico, demagogo, o escambau. Ninguém mexe nos privilégios da classe média, ninguém mexe na família enraizada na ética e na estética do poder de consumo como base moral da exclusão, no Direito de uma só via amarrando as desigualdades, na propriedade e na geografia da miséria. É o new cabresto. Um curral simbólico, porque quem mais sofre com essa desigualdade, infelizmente, não deseja a igualdade, senão para si, ou com boa vontade, um desejo absurdo de um mundo justo que cairá do céu, como se todo mundo ganhasse sozinho na mega-sena sem jogar. 


O carinha da classe baixa precisa chegar na média. O carinha da classe baixa é domesticado desde o berço pra querer ganhar mais grana, comprar um carro novinho, iPhone, vestir as roupas que o carinha da classe média veste, e mais nada. O carinha da classe baixa é treinando pra desejar frequentar os lugares que o carinha da classe média frequenta. Treinado para desejar pegar as menininhas de roupinhas coloridas no paraíso dos shoppings, nas festas em boates com drinks coloridos e luzinhas super legais. Porque é ali (dizem) que a vida de fato acontece, cheia de som e fúria. E os próprios professores, a televisão, bibliografia de auto-ajuda, os pais, religião, pregam a perseverança do batalhador de orelhas murchas, da alegria constante e inabalável, da coragem irrestrita, não tem medo de pegar no batente, seja qual for, pra chegar lá, correr atrás desses sonhos (de consumo impingidos artificialmente pela publicidade), mesmo que saia a quilômetros de distância em desvantagem. E sem saber porque está em desvantagem: talvez, porque Deus quis, porque a vida é naturalmente assim. E isso só tende a piorar com o tempo. O carinha tem que chegar na média.

IINCREDIBILIS a creative blog by Enrico M.


Se todo mundo tiver o mesmo poder de consumo, e consumir irresponsavelmente como a classe média consome, pintada de verde sintético, é o fim do mundo. Onde vão enfiar tanto lixo? Tantos carros? Tantos badulaques e cacarecos obsoletos? Afinal, as indústrias trabalham a todo vapor, entulhando novos badulaques e cacarecos obsoletos nas prateleiras, e pra se comprar é necessário descartar, é preciso se livrar dos cacarecos antigos, é preciso leveza para se consumir. 

Por isso essa suposta leveza espiritual, que tanto pregam por aí, não é leveza espiritual porcaria nenhuma. Tem a base concreta enraizada na lógica do consumo rápido, rasteiro, constante. Não se prender a nada e se livrar das coisas rápido, é simplesmente para manutenção do estado de constante consumidor, de mãos livres, sempre livre para consumir, sempre em processo, sempre em movimento, nunca parado. Afinal, o dinheiro tem que girar. Parar é um pecado e a contemplação é um crime. Dinheiro não tem raízes, o dinheiro tem que viajar. O dinheiro é livre, você e eu, não. 


O que a gente faz? Boa pergunta, suicídio é muito anos 70, greve de fome já tá excessivamente banalizado (até o Garotinho fez), e as milícias revolucionárias estão tão fora de moda em terras tupiniquins, ainda mais agora que começou o Campeonato Brasileiro, e logo tem o Rock in Rio, SWU, fim de ano em Ubatuba e a Copa (!). E você não vai querer organizar uma revolução e perder o Rock in Rio, SWU, fim de ano em Ubatuba e a Copa. 

Ou vai?


"tribo amazônica desconhece conceito de tempo"

Texto/matéria da  BBC NEWS na Folha. Imagens meramente ilustrativas: INCREDIBILIS a creative blog by Enrico M.


"Pesquisadores brasileiros e britânicos identificaram uma tribo amazônica que, segundo eles, não tem noção do conceito abstrato de tempo.



Chamada Amondawa, a tribo não possui as estruturas linguísticas que relacionam tempo e espaço --como, por exemplo, na tradicional ideia de "no ano que vem".

O estudo feito com os Amondawa, chamado 'Língua e Cognição', mostra que, ainda que a tribo entenda que os eventos ocorrem ao longo do tempo, este não existe como um conceito separado.



(...)

O primeiro contato dos Amondawa com o mundo externo ocorreu em 1986, e, agora, pesquisadores da Universidade de Portsmouth (Reino Unido) e da Universidade Federal de Roraima começaram a analisar a ideia de tempo da forma como ela aparece no idioma falado pela tribo.


"Não estamos dizendo que eles são 'pessoas sem tempo' ou 'fora do tempo'", explicou o professor de psicologia da língua na Universidade de Portsmouth, Chris Sinha.

"O povo Amondawa, como qualquer outro, pode falar sobre eventos e sequências de eventos", disse ele à BBC. "O que não encontramos foi a noção de tempo como sendo independente dos eventos que estão ocorrendo. Eles não percebem o tempo como algo em que os eventos ocorrem."

Tanto que a tribo não tem uma palavra equivalente a "tempo", nem mesmo para descrever períodos como "mês" ou "ano".

As pessoas da tribo não se referem a suas idades --em vez disso, assumem diferentes nomes em diferentes estágios da vida, à medida que assumem novos status dentro de sua comunidade."

Matéria completa.

*
E a estética transcendental kantiana, e a condição de possibilidade a priori do conhecimento uma hora dessas, campeão?

21/05/2011

método prático experimental de guerrilha sentimental


Toshiaki Uchida
Enquanto os neurocientistas não inventam um termômetro pra poder identificar, com certeza, quando é paixão, contingente e passageira, e quando se trata de amor, necessário e enraizado, eu acabei desenvolvendo um método prático experimental de guerrilha sentimental.

É bem simples.

Se é paixão, acordo de manhã e a primeira coisa que me vem à cabeça, antes de qualquer outra coisa, é o cigarro. Vou lá, encho uma xícara de café e pito meu cigarrinho sossegado, depois penso no resto, e nesse resto (com todo respeito) está a tal da pessoa objeto da paixão.

Se é amor, acordo de manhã com um aperto no peito, mando uma mensagem de bom dia, ligo, digo oi, pergunto se tá tudo bem. E só depois, me lembro do cigarro.

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18/05/2011

Um bom dia para rever "Control"

No dia 18 de maio de 1980 Ian Curtis, vocalista do Joy Division, cometeu suicídio, aos 23 anos de idade.



"To the center of the city where all roads meet, waiting for you,
To the depths of the ocean where all hopes sank, searching for you,
I was moving through the silence without motion, waiting for you."
Shadowplay, Ian Curtis.

Um bom dia para rever "Control".

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17/05/2011

Rapidinhas aleatórias

Depois de duas horas sozinho com duas mulheres numa mesa de bar, não estranhe se sentir necessidade de pedir desculpas por não ter um útero. 


Por um lado você é ingênuo se elabora frases com expressões como “nunca me senti assim”, “você é especial”, “confiança”, “planos” e “futuro”; por outro, você é só mais um careta ciumento se não se sente bem quando ela diz que vai sair pra tomar vinho com um amigo. 


As coisas estão cada vez mais complicadas pra aquele romântico maroto, romântico de várzea, romântico raiz. Aceite.


Quando você fala com uma mulher que tem namorado, instintivamente veste a máscara do sujeito utópico, e quando ela abre uma brecha ao apontar alguma carência do namoro ou do próprio namorado, imediatamente você identifica todos os defeitos e encontra todas as soluções, usa aquele discurso de mestre zen de cem anos, psicanalista supra-crítico, antropólogo social apartado do mundo e sua infalível visão privilegiada sobre o universo dos meros mortais. Na prática, claro, você é só mais um menino mimado que aprendeu a amarrar os cadarços com o Fofão. 

Nada pior que bons discursos e maus hábitos. 


Deve ser culpa da vibe darwinismo oba-oba, mas não se assuste se ouvir o argumento biológico como premissa a canalhice. 


Quem tem necessidade de solidão não fica falando que gosta de solidão, seria como um peixe dizer que adora água. 


Não confie em artistas de fim de semana.

16/05/2011

suite et fin



"O ônibus começou a frear e o barulho do motor retendo-se cresceu às minhas costas.

'E para onde tu vai?', eu perguntei, quase sem escutar minha própria voz.

O ônibus encostava, a porta já vinha aberta.

'Vou para a França', ela falou, esforçando-se para não ter a voz abafada pelo ruído dos automóveis.

Marta levava a mão ao suporte que a ajudaria a subir no ônibus, e eu não sabia o que dizer. Eu sentia calor, cansaço, e o barulho dos carros passando me envolvia numa espécie de massa de ruído, uma espécie de bolha que me impedia o acesso a qualquer outro som que não fosse aquele enervante dos motores dos automóveis passando sem cessar ao nosso lado. Através da bolha, vi que Marta subia no ônibus. Ela já tinha alcançado o último degrau quando finalmente eu disse: 'tu me escreve?', e consegui sorrir, furando a bolha: 'um cartão-postal?".

Os carros continuavam a passar em grande velocidade e eram cada vez mais numerosos. Marta já estava dentro do ônibus, que começava arrancar novamente.

'O quê?', e a porta se fechava.

'Tu me escreve?', berrei, formando uma concha com as mãos.

A porta do ônibus já tinha se fechado, e inúmeros, infinitos automóveis passavam em alta velocidade ao meu lado, produzindo aquele barulho que enchia meus ouvidos. Mas acho que consegui ler os lábios de Marta, sorrindo por trás do vidro:

'Escrevo.' "

Amilcar Bettega, O puzzle (suite et fin), Os lados do círculo, Companhia das Letras, 2004. p. 154.

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Faulkner e seus cães



"
Entrevistadora

O senhor gostaria de fazer outro filme?

Faulkner

Sim, gostaria de fazer um baseado em 1984, de George Orwell. Tenho uma ideia para o final que provaria a tese que não me canso de repetir: o homem é indestrutível simplesmente por seu desejo de liberdade."


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As entrevistas da Paris Review, Vol. 1Tradução: Sérgio Alcides e Christian Schwartz, Companhia das Letras, 2011. p. 14


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Mais escritores famosos e cachorros: aqui e aqui.


E de brinde:
Uma bela crônica do André Sant’Anna.
E o conto Bliss, Katherine Mansfield, na tradução de Ana Cristina César. (Via: Imaginario Poetico)
E a carta do Mário de Andrade para o Murilo Rubião.
E esse clássico do Mário Bortolotto.
esse texto da Juliana Cunha.



09/05/2011

Doce de leite

O ônibus chegou meia-hora antes do previsto e ele não tinha com o que aproveitar o tempo extra, e a própria expressão tempo extra lhe pareceu inadequada diante daquela situação. Afinal, logo estariam juntos e quando estavam juntos os minúsculos duendes invisíveis, travessos e sádicos, invadiam o interior dos relógios e aceleravam os ponteiros enquanto arreganhavam os dentes, se divertindo com o desespero silencioso dela, se divertindo com o desespero nos olhos dele. No piso dois, ele pensou em entrar na livraria e procurar um exemplar de Iniciantes para presenteá-la, mas então se lembrou, pela segunda vez, que ela havia comentando algo sobre doce de leite (que, aliás, não era recomendável que ela comesse), mas isso durou só um segundo, e ele atravessou à multidão, em debandada feito gado, saindo do metrô e se espalhando no terminal lotado em função do feriado. Ele desceu na saída da Av. Cruzeiro do Sul já com o isqueiro à mão. Lá fora, embora houvesse um fiapo de sol laranja caindo sobre o concreto aos seus pés, o céu estava cinza, e o ar estava cinza, feito uma cortina semi-transparente que caísse por toda parte. O último cigarro tinha saído da sua boca três horas antes enquanto olhava para os carros cortando a rodovia, de fora do restaurante onde ele tinha visto o doce de leite e se lembrando, pela primeira vez, que ela comentou, por alto, que estava com desejo de comer doce de leite; ele pegou o vidro, fez contas de cabeça conferindo o preço, e quase levou o doce, mas então se lembrou que não era recomendável que ela comesse, em função da alergia, e ele devolveu o vidro no lugar onde estava; e ali, três horas depois, rodeado por pessoas que não se olhavam nos olhos, também fumando, ele pensou, que talvez tivesse sido mesmo uma boa ideia ter comprado aquele doce de leite. E imaginou que (caso tivesse comprado o doce de leite) mais tarde, quando estivessem no apartamento dela, ele diria, deixa que eu pego, e andaria descalço até a cozinha e pegaria o doce na geladeira, e de volta ao quarto, ele ficaria feliz ao vê-la lambuzar a boca com generosas colheradas de doce de leite, até se sentir satisfeita, e ele voltaria descalço até a cozinha, deixaria o doce de leite na geladeira e levaria um copo d'água, do qual, como era de hábito, ela beberia só a metade e abandonaria, ali, ao lado da cama, pra beber depois. Mas não tinha comprado o doce de leite, e havia esse vestido no embrulho, porque foi bater o olho: e ele viu o corpo dela lá dentro. Era parecido com aqueles vestidos que ela usava e que ele gostava tanto. E se não fosse improvável, não seria difícil crer que aquele vestido tivesse, de um modo sombrio, escapado do guarda-roupas dela e ido parar na loja. Quando acendeu o segundo cigarro no filtro do primeiro, ele se perguntou o quanto ela estava satisfeita com isso como ele supunha estar satisfeito com isso. E como essa coisa toda tinha começado num acaso demoníaco, e que agora, ele supunha, eles estavam assumindo as rédeas, espontânea e simultaneamente; um passo por vez. E era preciso estar atento aos detalhes, claro, não ficar omisso, não fazer nenhuma besteira; como era uma besteira não ter levado aquele maldito doce de leite: mesmo que não fosse recomendável que ela comesse.


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07/05/2011

Círculo


"Na cama, ele perguntou a ela se podia acender a luz para vê-la. Ela disse que sim, fechando os olhos. E ele perguntou, de repente, se podia fotografá-la, no dia seguinte, completamente nua. Ela sorriu, abrindo os olhos e perguntando: — Por quê?

— Por nada, apenas para guardar comigo.

Mas ele estava pensando que o sistema deles era um círculo e eles desceriam novamente ao fundo e que um dia o círculo poderia se romper e eles permanecem para sempre no fundo, atolados no lodo do fundo. Mas restaria uma lembrança dela assim: jovem, bonita e nua."

06/05/2011

Passarinhos pra tratar

Chema Madoz

Ela tem vinte e oito anos e diz que não é feliz. Está vestida com uma dessas roupas de ginástica, num preto meio apagado, sem maquiagem nenhuma no rosto, cabelo preso, mas não consegue esconder a beleza. Quando entrou na cozinha da casa da irmã, um pouco antes, disse que não aguentava mais o cara que ela chama de monstro. É o pai do filho pequeno que está perto dela. Ela diz tudo num tom de piada, eu não vejo graça, e eu penso que deve haver algo de errado comigo. Diz que trocou um pai por outro, que tem mais medo do cara do que tinha do seu pai quando era menina. Eu estou ali por acaso e acabo ouvindo tudo sem querer. Mas não posso escapar. Ela me diz, feliz é você que não tem nenhum passarinho pra tratar. Eu não sei onde enfiar a cara, então enfio a boca no copo e acendo mais um cigarro pensando que talvez seja a hora de arranjar uns passarinhos pra tratar. 

Ela continua falando que odeia o monstro, que logo vai dar um fim nisso, mas ri sempre, sempre num tom de brincadeira e ironia leve de quem ri da vida e cujo toque do celular ou status do facebook é deixa a vida me levar, vida leva eu. E eu penso comigo que há um buraco entre aquele sorriso, aquelas palavras que ela usa, e essa realidade submissa que ela supõe estar presa. Penso em sapecar uma dessas filosofias baratas do tipo liberdade é coisa de ave, e a gente é mamífero, felicidade é desejar aquilo que se tem.

Mas não. 

Eu só consigo pensar em que tipo de passarinho seria melhor eu arranjar. Se é muita burocracia registrar um passarinho. Se requer cuidados em demasia. Quanto me custaria uma gaiola. Eu tenho um tio que fazia gaiolas, não sei se ainda faz. Talvez seja a hora de arranjar uns passarinhos pra tratar; é, talvez seja. 

Então entra uma mulher de uns cinquenta e poucos anos com brincos enormes e muito maquiada. Começa a falar sem parar de si mesma como se estivesse fazendo propaganda para algum pretendente. Sou assim, ganho tanto, fulano me disse que eu tenho uma cabeça muito boa. Vou comprar um carro e entregar na mão do sujeito que for bom pra mim. Na hora que eu quiser eu arrumo, vivo bem sozinha. Deixa a vida me levar, vida leva eu. Olho para as mãos enrugadas, cheias de anéis e esmalte, o pescoço afundando, a boca murcha, a pele viscosa, e sou levado a pensar que a vida nem sempre faz bem. 

Penso que aquela menina de vinte oito anos que se diz infeliz, deixa a vida me levar, vida leva eu, está de alguma forma ligada a essa mulher de cinquenta e poucos, mas estou meio bêbado e não consigo entender muito bem qual é a ligação. 

Há uma lacuna que não eu não consigo preencher. 

Tudo bem. 

Há pouca gente na rua quando vou pra casa. O vento me bate nas ventas e refresca um pouco as ideias, mas continuo doidejando rua afora, calculando sacos de alpiste, anilha, enviesado sobre memórias há muito tempo soterradas. O alçapão do Lindomar, pardais na mira do estilingue do Fiinho, os trinta e seis sanhaços que o Marcelo e eu  pegamos uma vez e enfiamos no viveiro do meu pai, e depois soltamos; porque a gente não ia dar conta de tratar de tanto bicho. Estou na porta de casa e ainda não sei onde é que vou arranjar uns passarinhos pra tratar, uns canários, trinca-ferro, um periquito, qualquer coisa assim. Poderia providenciar duas gaiolas e colocar ali perto da varanda. E toda manhã eles quase arrebentariam o peito numa lareia afinada e estridente, quando o sol apontasse por trás da serra, diluindo os restos de escuridão da madrugada anterior. 

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05/05/2011

Melhor cronista da nossa geração.

Meus amigos já estão de saco cheiro de me ouvir falar que eu acho o Antônio Prata o melhor cronista da nossa geração. Agora, me diga se isso não é genial:

"Perguntei o que eram aqueles lugares e meu pai disse que eram bares. Mas por que eram tão diferentes dos outros, em que comíamos frango a passarinho com Guara-cola? Meu pai explicou-me que naqueles bares havia mulheres peladas. Como?! Por quê?! Do alto de minha meia década de existência, “mulher pelada” evocava a imagem de minha mãe ou irmã entrando ou saindo do banho, de toca na cabeça e toalha na mão. Não conseguia imaginar que razão levaria mulheres a comer pastéis sem roupa. Meu pai seguiu a explicação: homens que não tinham namorada pagavam para ver aquelas mulheres peladas. Imaginei uns caras tristes, barba por fazer, a preencher palavras-cruzadas e bebericar um chope, enquanto mães e irmãs nuas iam e vinham de chuveiros inexistentes. A coisa não fazia o menor sentido. Pedi para irmos a um deles. Meu pai disse que era proibido para crianças. Devia ser para evitar que víssemos aqueles homens tristes, perdidos entre néons e tocas de banho, pensei."

A crônica completa tá aqui.

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04/05/2011

Museu da Oralidade: o homem de 24 dedos.





"Num povoado que tinha pra lá, tinha um homem que tinha 24 dedos. 
Seis dedo nas mão e seis nos pé.

(...)

Agora eu vi um garoto, só num pude pegar nele, mas eu vi. 
Ia pegar nele, levar a mão nele e dava um choque. 

(...)

Eu não tinha medo não. Eu tirava leite pro fazendeiro lá no pé da serra do Ingaí. Tava mais ou menos com uns 14 anos. Ainda não trabalhava de carapina. Aí eu ia em casa trocar de roupa, acho que era uma quarta-feira. Lá tinha só um trilho de cavaleiro, tinha estrada velha mas dava volta, e tinha uma trilha que atalhava. Eu olhei e pensei que era um bezerro. E gritei: bezerro, bezerro, bezerro! Ô bezerro, psiu! Quando eu achei que era mansinho, ele me deu um choque na mão. Era tipo um menino, aí eu falei assim: neném, ô neném, como é que você chama? Quem é seu pai, quem é sua mãe? Como chama seu pai, como chama sua mãe? Ele não quis falar não. Era baixinho. Não era grossão também não, era fino. Parece que tinha o olho vermelho. Eu vi que não era assim coisa desse mundo, né? Que aquilo era invisível. Aí largava, passava lá e deixava ele lá. Quem tava a cavalo não passava. Ele ficou lá uma temporada. Não foi muita gente que viu não, foi muito pouca gente. Os outro assim era medroso, né? Passou um morador da fazenda, ele tava contando esse causo pras criança, pros companheiro. Aí o companheiro falou: ô sinhozinho, essas coisa assim a gente larga pra lá, num mexe não. Aí eu falei: se eu encontrar com o garotinho eu vou pegar ele pra mim e trazer pra cá. E ele respondeu: cê é louco? Cê tá ficando louco?"

Fragmentos do depoimento de Oliveira Peixoto Arantes (1921), morador de Luminárias-MG, disponível no Museu da Oralidade, projeto sensacional da ONG Viraminas, financiado pelo Ministério da Cultura, através do programa Cultura Viva. Pra conhecer o projeto, e vale muito a pena, basta acessar: http://museudaoralidade.org.br

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03/05/2011

Eu tinha que marcar o cara



O nosso time só perdia. Com sorte, arrancava um empate. Mas, pela primeira vez, a gente tava numa final. E eu que tinha que marcar o cara.

O cara era o melhor jogador do campeonato. Todo mundo falava que a gente ia levar uma sapatada.

O cara era o camisa sete, truncado, fortão mesmo. Corria feito um condenado.

Eu olhava o cara chutar a bola do outro lado da quadra e quando a bola batia na parede do ginásio parecia um trovão. Minhas pernas tremiam, porque eu tinha que marcar o cara.

Eu lembrava do Zé Antônio me chamando no canto, um pouco antes, ali no vestiário, quando eu nem tinha colocado o meião e o tênis, molhado o cabelo, vestido o uniforme, combinado umas jogadas e a gente nem tinha rezado, não tinha feito nada ainda; e o Zé Antônio me chamou no canto, mexeu nos óculos, sério, disse que eu tinha que marcar o cara, ir aonde o cara fosse, não podia, de jeito nenhum, dar espaço pro cara. Não podia deixar o cara chutar, não podia deixar a bola chegar no cara, não podia deixar o cara passar. Eu tinha que marcar o cara. 

E eu era o cara mais magro do meu time. E eu tinha que marcar o cara. 

O cara era o artilheiro do campeonato, uns oito gols à frente do segundo, e diziam que o cara tinha até passado na peneira do América, ia virar profissional, o cara. No futebol de campo o cara era ainda mais largo que no futsal. O cara era fodão mesmo, e eu tinha que marcar o cara. 

Uma menina, que eu gostava, tava sentada na arquibancada, e eu tinha que marcar o cara. 

Eu tinha assistido a outra semi-final. O time do cara ganhou de goleada, sem qualquer dificuldade, com quatro gols do cara. O cara pedalava pra caralho, e naquele tempo pedalada nem chamava pedalada, e eu tinha que marcar o cara. 

A verdade é que eu tava morrendo de medo de marcar o cara. 

O Henrique, que era maiorzão, que devia marcar o cara. Eu era miúdo demais pra marcar o cara. Mas o Zé Antônio, sei lá por que, confiava em mim (talvez, fosse uma estratégia secreta, me manter longe da bola, com a qual eu não tinha lá muita intimidade, e evitar um mal maior), e afinal, eu ia fazer o quê?

Eu que tinha que marcar o cara.

***
Futsal você sabe como é. Soltou a bola é só correria. Os quatro jogadores com a posse de bola girando na quadra e a bola girando muito rápido de pé em pé, enquanto os quatro jogadores sem a bola ficam cercando, fechando os espaços, colados cada um num cara. Eu tava sempre colado no cara, eu não podia largar do cara.

Eu era a sombra do cara.

Quando a bola vinha pra ele, eu dava o que tinha, puxava a camisa, empurrava, enroscava nas pernas dele, saraivava as canelas do cara, chapiscava umas voadoras disfarçadas e o cara caía, reclamando; o cara levantava os braços e pedia falta, o treinador do cara reclamava, o banco de reservas do time do cara se levantava, mas era sempre na bola que eu ia, quase nunca era falta. O juiz olhava pra mim, ali no chão, enroscado no cara, e entendia, claro, que era sem maldade nenhuma, eu tinha que marcar o cara e só tava tentando marcar o cara. O juizão mandava o jogo correr e o cara ficava puto. 

O juizão apitou o intervalo e nosso time tava bem empolgado. Embora o time do cara tivesse ficado com a bola a maior parte do tempo, o jogo tava bem jogado. O nosso time tava fechadinho, marcando no campo de ataque, deixando o time do cara sempre sob pressão e sem ter pra onde passar a bola. E tudo bem que o nosso time tivesse muita dificuldade em trabalhar as jogadas e finalizar. Eu, por exemplo, não finalizava nada. Meu negócio era desarmar, meu negócio era marcar o cara e eu só pensava em marcar o cara. O Henrique também pouco finalizava. Chutava forte pra caralho, mas nunca acertava o gol. Os nossos gols sempre vinham em contra-ataques rápidos, em que o Kiko, goleirão, lançava o Rodrigo ou o Enio numa jogada mano a mano com o fixo deles, caindo nas costas de um dos alas, ou mesmo cara a cara com o goleiro. Uma hora vai acontecer, o negócio é segurar. Futebol é detalhe,  disse o Zé Antônio, ganha quem erra menos.

Não pode dar espaço pro cara.

Eu tava com as pernas frouxas, os joelhos esfolados e a parte externa da coxa queimada de tanto sarrafiar o cara, de tanto correr atrás do cara, de tanto rodar em volta daquela quadra atrás do cara. 

Quando eu me deitei no chão do vestiário, bufando, com o peito ardendo (tinha bebido uns dois litros de rum com coca na noite anterior), e disse que talvez não aguentasse o segundo tempo, que eu tava morto, o Zé Antônio, que me abanava com a camiseta, disse que eu tinha que voltar, que eu precisava marcar o cara, que não tinha ninguém pra marcar o cara. 

Eu enfiei a cabeça e as costas debaixo do chuveiro e fui me refrescando e bebendo aquela água ao mesmo tempo. A sede era terrível. Minhas pernas ardiam e queimavam. O Zé Antônio batia palmas e gritava, pedia raça, vigor, força de vontade, o escambau. Lá debaixo do chuveiro e disse que eu tava morto, que tava foda, que não sabia se ia dar. O Kiko, goleirão nosso, chegou no canto do chuveiro e disse: “Tá zoando, mano? Cê tem que voltar lá. Cê tem que marcar o cara”. 

Eu precisava voltar, eu tinha que marcar o cara. 

O time do cara voltou dando um gás desgraçado na gente. Foi a maior pressão no nosso goleiro. Bombardearam o Kiko naquele começo de segundo tempo, sem dó nem piedade. Eles colocaram dois jogadores descansados, dois baixinhos magrelos, e começaram a girar na quadra numa velocidade tenebrosa, tava complicado de acompanhar, e quando a gente dava uma lebrechina que fosse, chutavam com tudo pra gol. O Kiko rebatia, espalmava pra cima, saltava de um lado pro outro, defendia com o pé, canela, de barriga, cotovelo, cabeça ou só no golpe de vista, fosse o que fosse, mas nunca perdia a tranquilidade. Só pedia pra gente colar nos caras e a gente colava nos caras. Era foda, mas a gente se esforçava como podia pra ficar colado nos caras.

Continuei saraivando o cara. Mas o cara era fodão. E numa hora, ele investiu pra cima de mim, pedalando com uma precisão impressionante. Acho que fiquei meio hipnotizado, com as pernas girando e falseando na minha frente, feito a boca de uma colheitadeira girando na vertical, e foi aí, que meio afoito, antecipei o tempo do bote, e só me lembro da bola escorrendo entre as minhas pernas - em câmera lenta, enquanto minha coluna travava.

Foi uma bela de uma caneta, o cara era mesmo fodão.

Mas eu não podia dar espaço pro cara. Não deixei ele completar o drible. Apoiei a mão no chão e lasquei uma rasteira giratória, na bola, e ele voou no chão, meio de lado e de bruços. Falta, apitou o juiz, e ergueu o cartão amarelo pra mim. A torcida vaiou. Mas o cara não se deu por satisfeito e disparou a reclamar de mim, a reclamar do juizão, a reclamar sem parar. Levou cartão também, e ficou mais puto ainda. 

Eu não podia fazer nada, eu só tava marcando o cara. 

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Lembro que a jogada começou num lateral nosso, no ataque. O Enio tentou partir pra cima e se enroscou com a bola, acabou cedendo lateral pra eles. Eu tava colado no cara. Eu era a sombra do cara. Mas do nada eles giraram na quadra, invertendo o posicionamento. Numa confusão, dúvida, vacilação, entre eu e o Rodrigo, entre quem marcava quem, o Rodrigo ficou no cara e eu parti atrás de outro cara. O cara sobrou sozinho e meteu um foguete no canto, sem chance nenhuma do Kiko alcançar. 

Olhei pro nosso banco de reservas na mesma hora. Lembro da cara desolada do Zé Antônio. Mesmo que ele não tenha dito nada, eu entendi que a culpa era minha, porque eu devia ter colado no cara, não podia dar espaço, não podia deixar a bola chegar no cara. Eu tinha que marcar o cara.

O nosso time não finalizava. Naquele nervosismo, muito menos. O Zé Antônio pediu tempo e disse pra gente acalmar, que não era pra desembestar pra frente, não era pra apavorar. O negócio era continuar prestando atenção na marcação e aproveitar os contra-ataques. Agora o time deles ia vir pra cima, pra tentar matar o jogo. Iam abrir espaços pra gente. 

Dito e feito. 

Num desses contra-ataques, o Henrique acabou saindo sozinho na ala esquerda, e o cara, que também tava nervoso, veio com excesso de vontade e levantou o Henrique uns dois metros de altura com uma saraivada. O cara já tinha amarelo, o cara foi expulso. A torcida vaiou o cara. O técnico do cara xingou o cara. O cara arrancou a camisa, bateu a porta do vestiário. Coitado do cara. 

Eu senti um alívio desgraçado, feito um fardo que me fosse roubado, um peso que saísse da consciência. Não precisava mais marcar o cara. Estava livre, não havia a imposição de perseguir o cara, de não deixar a bola chegar no cara, de não dar espaço pro cara, nem nada.

Eu podia marcar qualquer cara.

Estranhei aquela promiscuidade da marcação por setor, cada hora marcando um cara, cada hora atrás de um cara, colado num cara diferente a cada saída do goleiro, escanteio, lateral. Fiquei meio perdido na quadra, me sentia obsoleto, abandonado. Eu era a sombra do cara, e sem o cara, eu não era nada.

Cumpria a função de colar nos outros caras, cercar aqui e ali, mas era meio burocrático, não era a mesma coisa. Aquele clima de missão, combate, batalha, tinha evaporado.

E nem o gol de empate do Henrique, que nunca acertava uma falta, e a torcida vibrando e gritando, o nosso banco pulando e todo mundo se abraçando, espantou a confusão.

O time deles não era nada sem o cara. O Enio partiu numa investida, pedalou, e provocou outra falta. E vocês não acreditam que o Henrique, que nunca acertava, acertou aquela outra falta também. Dia estranho aquele.

Daí, foi só administrar o placar e comemorar depois. Até entrevista pra rádio local a gente deu. Ainda tenho a medalha desse campeonato perdida em alguma gaveta, meio escurecida. II JAEL-Jogos Abertos e Estudantis de Luminárias-MG, Infanto-Juvenil, Campeão.

No barzinho lá da praça, mais tarde, eu vi o cara no balcão. Cheguei perto dele e ofereci um gole de rum. O cara bebeu e me cumprimentou, disse que eu batia pra caralho. Que nada, eu disse, mas que um cara assim, como ele, se a gente desse bobeira, já era. Disse que ele era o melhor cara que eu tinha marcado na vida. O cara sorriu, e disse que a gente se encontrava por aí. 

Lembro que vi ele saindo do bar, pegando na mão de uma mocinha do cabelo pretinho e saindo pela rua afora. E eu pensei comigo, tá aí um cara fodão. 

Num canto da praça, os caras, com a medalha no peito, me esperavam, pra gente comprar mais uma garrafa de rum. 

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