Para o Elvis, in memoriam
Quem já acampou comigo, conhece bem essa minha mania. Tenho uma preocupação excessiva com a fogueira. Mas essa atração pelo fogo não é de hoje. Conta minha mãe que, quando eu tinha uns três anos e pouco, quase meti fogo na casa. As prateleiras da cozinha eram forradas com jornal, e eu, miúdo, saquei um fósforo que tava de bobeira em cima da mesa e tasquei fogo na pontinha de uma folha, lá no pé da prateleira. Quando minha mãe entrou na cozinha, eu, aquele pingo de gente, tava com a caixa de fósforo na mão, olhinhos arregalados [sereno], contemplando as chamas que iam lambendo as prateleiras com tudo, de cima para baixo. Eu não lembro do caso, mas deve ter sido uma beleza de fogo.
Talvez seja culpa dos astros. Na astrologia, eu sou praticamente um dragão industrial, revestido de trempes, cuspindo labaredas para tudo que é canto. Meu elemento astrológico [adivinhe] é o fogo, tanto do signo como no ascendente. Meu astro regente é o sol. E até na filosofia, entre os pré-socráticos, embora goste bastante do Anaximandro, eu sempre fui meio fascinado com os fragmentos do velho Heráclito.
Mas voltemos ao acampamento. Enquanto alguns são obcecados pela montagem metódica da barraca, outros preocupados com a comida, o meu negócio é a fogueira (os motivos parecem óbvios). A primeira coisa que eu faço é caminhar pelo local, seja o alto de uma serra, beira de rio ou ribeirão, juntando galhos e gravetos, troncos velhos, amontoando folhas secas. Vou ajeitando tudo de maneira exemplar num cantinho. Depois vou montando a fogueira com calma e bastante cuidado.
Você precisa saber que não é apenas jogar os galhos uns sobre os outros. Você precisa deixar espaços entre os troncos maiores. O ar, o comburente, precisa circular de maneira adequada. Tem que ir forrando os galhos com folhas secas, trançando a coisa da melhor maneira possível. Sem deixar lacunas em excesso, sem abafar demais. É meio como escrever. Tem muito da escritura na montagem de uma fogueira. Você escolhe as palavras como escolhe os troncos, e nem sempre o tronco, galho, graveto, é aquele que você esperava encontrar. Dificilmente você vai encontrar uma lenha virgem já pronta para a fogueira. Você precisa partir os galhos, diminuir o tamanho. Precisa ver se o tronco não está verde. Precisa arquitetar a montagem, escolher o lugar certo e deixar uma boa reserva de lenha para alimentar o fogo de tempos em tempos. E mesmo que a condição não seja ideal, e nunca é ideal, você usa o que tem. No fim das contas, você sabe, o importante é construir uma fogueira que funcione da forma que tem que funcionar. Uma fogueira capaz de aquecer e iluminar durante a noite, o tempo que for necessário. E não pode queimar rápido demais. O fogo precisa equilibrar consistência e vigor; se fraquejar, as chamas serão engolidas pelo sereno, soterradas silenciosamente pela escuridão.
***
Choveu a semana inteira. E quando estiou, o Elvis e eu, juntamos as coisas e fomos acampar. Eu achava que era impossível acender uma fogueira com a lenha encharcada daquele jeito, mas o Elvis disse que era fácil, coisa simples, bastava um pouco de querosene. Tá certo, eu disse.
O querosene tava numa dessas garrafinhas descartáveis. O Elvis despejou cuidadosamente sobre uns galhos e gravetos, e riscou o isqueiro. Mas a coisa não funcionou de imediato. Tava tudo muito encharcado. Ele persistiu tentando, resmungando, soprando, riscando o isqueiro. Não deu certo.
“Tá danado”, ele disse.
As tentativas falhas prosseguiram, e eu já ia me acostumando com a ideia de passar a noite sem fogueira. As sombras de uma noite fria e silenciosa tomavam conta da minha cabeça. Mas quando tudo parecia perdido, o Elvis levantou, foi até suas coisas, e arrancou uma lasca do colchão. Eu não entendi.
“Agora quero ver se pega ou não pega”, ele disse.
Molhou aquilo com querosene, riscou o isqueiro, e rapidamente as chamas da lasca de colchão, exalando uma fumacinha preta, enxugaram os gravetos. Secos, os gravetos começaram a queimar e enxugar outros gravetos. E quando já tinha uma quantidade boa, o Elvis arrastou um tronco maior, banhou de querosene e ficou olhando. O tronco levou um certo tempo para enxugar, mas quando enxugou, já era.
À noite, enquanto a gente bebia e conversava, de frente do fogo que subia firme, vigoroso e imponente, virei para o Elvis e soltei uma piadinha para quebrar o silêncio:
"Eu preciso aprender muitas coisas sobre fogueiras".
Sem desviar os olhos do fogo, ele respondeu:
"Eu preciso aprender muitas coisas sobre muitas coisas".
As risadas foram engolidas pelo silêncio da noite que avançava fria e úmida, forrada pelo barulho do rio escorrendo como sempre, sobre as pedras; o barulho de estalos secos na fogueira, as chamas lambendo troncos e galhos, reduzindo tudo as cinzas.